sábado, 11 de julho de 2015

O Papa, a Pachamama e o Mar Boliviano

O Papa, a Pachamama e o Mar Boliviano

Editado por Silmara Schupel.
12.07.2015 00:36
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Em sua segunda visita à América Latina - a primeira foi ao Brasil, em junho de 2013 - Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, desembarca em um continente açodado por uma escalada conservadora, com a interminável crise venezuelana servindo de caixa de ressonância para "golpes brandos" no Brasil e no Equador, o Chile mergulhado no mais grave atoleiro de corrupção e governabilidade de sua transição democrática, e o Peru resistindo nas ruas e nos campos à guinada direitista do governo Ollanta Humala, acusado de aliança com poderosas mineradoras multinacionais.
Reportagem de Frederico Füllgraf
Santiago do Chile
Como primeiro pano de fundo da ofensiva reacionária, reverbera o efeito retardado da quebradeira dos bancos, de 2008, o refluxo da Economia mundial e, com ele, o esgotamento do ciclo neo-desenvolvimentista, que durante doze anos e em seis países do continente foi marcado por altas taxas de crescimento econômico e a inclusão social de pelo menos 60 milhões de sul-americanos.
Não é teoria da conspiração quando o presidente do Equador, Rafael Correa, adverte à proliferação de ONGs neoliberais - no Brasil, os institutos Ludwig von Mises, Liberal e Cato, todos com sedes em Washington D.C. - que, a exemplo do National Endwoment for Democracy (governamental) e o Open Society (fundação de George Soros) como agências financiadoras e de treinamento do golpe na Ucrânia, de fevereiro de 2014, há anos e sob as vistas grossas de governos de centro-esquerda, investem no adestramento de lideranças, infiltrando o protesto difuso da cidadania na América Latina (vide Revoltados Online e Vem pra Rua) com táticas insurrecionais e subversão golpista.
Bastou o bem sucedido e popular Governo do Equador encaminhar ao Congresso seu projeto-de-lei sobre a taxação de heranças e grandes fortunas, e furiosas marchas das classes média e alta ecoaram pelas ruas de Quito e Guayaquil o "¡Fuera Correa!" - versão "Miami" do "Fora Dilma!" -, lideradas por prefeitos ultra-conservadores e jovens treinados pelas filiais do National Democracy Institute (NDI) e estimulados pela Acción Ecologica.
A Pachamama...
Não poderia haver países mais simbólicos que o Ecuador e a Bolivia e momento mais oportuno para a visita do Papa, cujo périplo evangelizador termina no Paraguai, pois o segundo pano de fundo de sua visita é o grave passivo ambiental na América Latina, acentuado pelas alterações climáticas globais, mas cujas feridas abertas são o continuado desmatamento das grandes florestas tropicais e subtropicais, suplantadas pela expansão da monocultura florestal, a desertificação e erosão dos solos, o uso indiscriminado de transgênicos e agrotóxicos pelo grande agronegócio, a truculenta alteração da paisagem e a contaminação dos recursos hídricos por mineradoras multinacionais nos Andes, e o "urbanicídio" como metáfora da hipermotorização individual, baseada no automóvel, que submerge na poluição atmosférica e na morte por intoxicação as populações da Cidade do México, de Santiago do Chile e São Paulo.
Gêmeas siamesas malditas, colada à devastação ambiental, a degradação social mostra-se com sua pior carranca, que o pontífice argentino denuncia energicamente, misturando-se aos povos morenos do altiplano andino, que oram para a Virgem Maria, mas são devotos da Pachamama, a grande deusaMãeTerra da cosmogonia quechua-aimara, e uma das fontes arquetípicas que inspirou o Papa para sua encíclica Laudatio si´.
... e a Revolução Cultural de Francisco
Não é por acaso que Francisco inaugura sua pregação orbicular pela salvação do planeta no Equador e na Bolívia, pois ambos - e únicos na América Latina - inscreveram seu compromisso com o o respeito à natureza e o modo sustentável de desenvolvimento em suas Constituições.  
Diz o preâmbulo da Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia:
"Em tempos imemoriais ergueram-se montanhas, deslocaram-se os rios, formaram-se lagos. Nossa Amazônia, nosso chaco, nosso altiplano e nossos vales e planícies cobriram-se de viço e flores. Povoamos esta Sagrada Mãe Terra com rostos diferentes, e compreendemos desde então a pluralidade vigente em todas as coisas e nossa diversidade como seres e culturas... Nós, mulheres e homens, através da Assembleia Constituinte e com o poder emanado do povo, manifestamos nosso compromisso com a unidade e integridade do país. Cumprindo o mandato de nossos povos, com a fortaleza de nossa Pachamama e graças a Deus, re-fundamos a Bolivia. Honra e glória aos mártires da gesta constituinte e libertadora, que tornou possível esta nova história."
Por este compromisso e o êxito alcançado pela administração Evo Morales, que perdura desde 2006, em sua primeira alocução em praça pública, em El Alto, o Papa elogiou e agradeceu ao primeiro presidente indígena da Bolívia, enaltecendo o valor espiritual do ser e excecrando o poder do "deus dinheiro".
Consequente e exemplar em sua conduta, como José Pepe Mujica, em sua encíclica o jesuíta argentino espelha-se na austeridade e amorosidade de Francisco de Assis, difamado como herege ao denunciar o antropocentrismo e a prevalência do ser humano sobre as espécies animais e vegetais da Criação Divina - postura subversiva que o Papa atualiza, denunciando a subcultura consumista e exploradora da natureza e dos pobres, pregando o gozo terrenal do ser humano munido de apenas poucas posses, mas com coração generoso.
Seu chamado conclama ao resgate do amor à nossa Terra, pois seu estado é dramático, por vezes com sintomas de paciente terminal. Por isso, Francisco é enfático: ou a humanidade se junta e se salva, ou - para usar uma figura bíblica - juntos definharemos como "estrume do demônio".
Medindo o pulso do mundo
Corre o boato de que a obra sobre a problemática ambiental do teólogo Leonardo Boff seria a fonte batismal da encíclcia Laudatio Si. É verdade que o Papa solicitou-lhe aportar alguma perícia no assunto, mas a agenda propriamente dita - como recorda oportunamente João Pedro Stedile, do MST brasileiro - foi gerada a pedido do Papa em outubro de 2014, no Vaticano, por um ciclo de seminários com lideranças populares do mundo inteiro, sobre temas candentes que afetam o cotidiano das pessoas em escala global: as desigualdades sociais (sem terra, sem emprego, sem teto), o grande agronegócio e seus impactos químicos (transgênicos e agrotóxicos), aos quais se somaram pesquisas e alertas de cientistas comprometidos.
Esta é a "massa crítica" novamente reunida na 2ª Cúpula dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, com representantes de 20 países, incluindo o Brasil, presente com 250 delegados, que ouviu o Papa - Texto íntegro del discurso de Francisco en la Cumbre Mundial - e por sua vez entregou-lhe uma declaração final do encontro.
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Como assinalou Stedile, as posições do Papa "têm tem sido uma grata surpresa a todos, não só para os movimentos populares, mas para a sociedade em geral".
O jesuíta Jorge Costadoat - professor de Teología da PUC do Chile - vai mais longe. "Francisco dirige os canhões contra os grandes poderes econômicos e políticos, e a tecnocracia de que se servem para obter lucros máximos com o menor custo possível. O Papa questiona radicalmente a ideia predominante de progresso. Interroga a fundo a cultura moderna que violou sem escrúpulos todos os limites da Criação, substituída pela cultura pósmoderna, individualista e egoísta... O Papa [também] recorda que o princípio-chave da doutrina social da Igreja é o ´destino comum de todos os bens´. A propriedade privada é, para este efeito, um meio. Nesta perspectiva ecológica, a propriedade privada há de ser relativizada. A Terra pertence a todos. No atual estado das coisas, este chamado é subversivo", celebra o jesuíta chileno.
O que fazer?
"O plano inclinado para o desastre requer uma reação enérgica. Francisco fala da necessidade de uma ´revolução cultural´. Não temos atualmente a cultura suficiente para reverter a situação. É preciso gerá-la", adverte Costadoat, mas para isso "são necessários muitos novos corações".
O "Mar Boliviano"
Contrariando as expectativas da presidente Michelle Bachelet e seu chanceler, Heraldo Muñoz - que desde 2014, quando Evo Morales convidou o Papa para visitar a Bolívia, temiam a instrumentalização da visita para granjear simpatias ao pleito boliviano de uma saída soberana ao mar, e por isso solicitaram audiência ao Vaticano, pressionando de modo não propriamente elegante o Papa para que não aceitasse qualquer missão mediadora no conflito que dura mais de cem anos - durante sua missa na Catedral de La Paz, Francisco mais uma vez surpreendeu - até mesmo a Evo Morales, que durante a visita do pontífice não arredou o pé de seu lado - ao dizer em tom de voz quase sussurrado, depois de um longo intervalo de silêncio: "Estoy pensando acá.... - en el mar!": Papa Francisco: "Estoy pensando acá en el mar..
Para quem não conhece a história da fundação da República da Bolívia, é oportuno recordar que ela nasceu com 400 quilômetros de litoral, e que Cobija - hoje uma aldeia-fantasma, cujas ruínas miram o Pacífico, no sul do deserto de Atacama - foi o primeiro porto oficial criado por Simón Bolívar, em 1828, com o sonoro nome de Lamar.
Em abril de 2013, a Bolivia protocolou uma ação contra o Chile perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, para forçar uma negociação sobre o que considera "pendência histórica": uma saída soberana ao mar através dos territórios bolivianos incorporados pelo Chile após sua vitória na Guerra do Salitre (1879-1883). A demanda é recusada pelo Chile, para quem todas as diferenças fronteriças com La Paz teriam sido resolvidos pelo Tratado de Paz e Amizae de outubro de 1904. Apesar da tentativa de impugnação do Chile, a CIJ acolheu o pleito boliviano, devendo emitir sentença até 2016.(leia mais em: Saída ao mar desencadeia guerra audiovisual).
Indireta, a frase de Francisco, "Estoy pensando.... en el mar!", acionou todos os alarmes do palácio La Moneda. Sutil, com ela o Papa intima o Chile a sentar à mesa de negociação. Porque a Pachamama deseja abraçar o mar. 

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