quarta-feira, 29 de julho de 2015

O juiz da roça tinha razão e o novo CPC

O juiz da roça tinha razão e o novo CPC


Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Jorge de Oliveira Vargas

Atribui-se a Nelson Hungria a expressão: “não é que o juiz da roça tinha razão”; quando, como Ministro do Supremo Tribunal Federal, refletia sobre uma questão jurídica e reconhecia que estava equivocado; que a razão estava com um juiz iniciante, de uma pequena cidade localizada no interior de Minas Gerais. Lembrei dessa história quando estava lendo sobre a influência dos precedentes no Novo Código de Processo Civil e o possível conflito que possa haver entre a segurança jurídica e a justiça.

O Estado Democrático de Direito, na dicção de Clèmerson Merlin Clève, não é apenas um Estado de Direito, e sim um Estado de Justiça, não podendo, a lei, ser aplicada no sentido de resultar, no caso concreto, uma injustiça. Assim como acontece com as leis, deve acontecer com os precedentes. Os precedentes visam a garantir a segurança jurídica, que é outro princípio constitucional fundamental, mas que não pode se sobrepor ao princípio da justiça.

O devido processo legal deve garantir uma prestação jurisdicional tempestiva, adequada e justa. Os precedentes não podem ser interpretados ao pé da letra; necessitam ser interpretados e reinterpretados; não se pode anular o ato de criação; a obediência estrita só pode ser obtida à custa da anulação da vitalidade das pessoas. Os juízes não podem ser transformados em robôs.

O Novo Código de Processo Civil, em nome da segurança jurídica, estabelece regras decorrentes dos precedentes, que podem tornar o Poder Judiciário numa organização mecanicista, em que os juízes, principalmente de primeiro grau, devem, em muitos casos, ter um comportamento apático. Esse Poder não é uma organização mecânica, mas sim uma organização viva, em que há uma participação ativa de todos os seus membros, fazendo a interpretação do ordenamento jurídico ter uma evolução constante.

Assim, a primeira observação a ser feita refere-se ao capítulo que trata da improcedência liminar do pedido. A crítica que se faz é ao art. 332, que diz: nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; entendimento firmado em incidente de resolução e demandas repetitivas ou de assunção de competência; ou enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local. Tudo em nome da segurança jurídica e da celeridade processual.

Todavia, a cabeça do referido dispositivo requer outra leitura, ou seja, que nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, poderá julgar (e não, julgará) liminarmente improcedente o pedido que contrariar os citados precedentes, pois pode ocorrer que no caso concreto o precedente, aplicado ao pé da letra, dê margem a um resultado injusto.

A injustiça não pode ser sacrificada em nome da segurança jurídica. A reflexão, pelo juiz de primeiro grau, ou mesmo pelo de segundo, não pode ser anulada. Não se pode esquecer que é direito fundamental do jurisdicionado ser julgado por um juiz independente, e não por um juiz autômato. Isso não significa dizer que os precedentes não devam ser respeitados. Devem sim, e ajudam muito na celeridade processual, bem como na segurança jurídica, porém, não podem ser vistos como dogmas.

A regra (art. 489, § 1º, VI) de que o juiz, ao fundamentar sua sentença, não deva deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento, deve ser vista com parcimônia, pois o juiz, com sua reflexão, pode superar o entendimento. Essa superação não precisa vir, necessariamente, de cima para baixo.

Se for necessário superar o entendimento contido nos precedentes, para se proferir uma decisão justa, ele, o juiz, pode e deve fazê-lo; não necessita aguardar que a superação do precedente venha dos Tribunais Superiores. O Poder Judiciário é um organismo vivo, composto por membros que interagem uns com os outros; fazem doutrina, jurisprudência; refletem as angústias, as injustiças, as desigualdades sociais. O Brasil é um continente; o brasileiro não é um ser homogêneo. A história pode se repetir. Mostrando os equívocos de um precedente, poderá um Ministro repetir: “não é que o juiz da roça tinha razão”.


Jorge de Oliveira Vargas, Pós doutor pela UFPR, membro da Academia Paranaense de Letras Jurídicas e professor universitário, é Desembargador no Tribunal de Justiça do Paraná. Originalmente publicado no jornal Gazeta do Povo (PR) em 24 de julho de 2015.

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