sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Mariana: Maximiliano de Wied-Neuwied e o Rio Doce em 1815


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Mariana: Maximiliano de Wied-Neuwied e o Rio Doce em 1815

Restaram poucos fragmentos de mata nativa na bacia do Rio Doce. O desmatamento foi intenso. Em decorrência, veio a erosão e o assoreamento. Os rios da bacia se tornaram rasos, inclusive o grande Rio Doce. Não restaram florestas nas magníficas ilhas do rio nem na Lagoa de Juparanã, ligada ao Doce, outrora orlada de matas. As margens da bacia foram invadidas por lavouras, pastos, indústrias e cidades. Para completar o processo de destruição, a atividade minerária, em Minas Gerais, lavou a Bacia do Doce, varrendo núcleos populacionais, poluindo a água com lama tóxica até a foz, matando peixes e outros organismos aquáticos, afetando a vegetação nativa das margens, prejudicando a economia agropecuária e suspendendo a captação de água para abastecimento público nas localidades por onde a lama escorreu. A responsável foi a mineradora Samarco, de propriedade da Vale e da anglo-australiana BHP.

Por Arthur Soffiati, ecohistoriador e ambientalista.

O momento histórico que vivemos é de excessiva destruição. O príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, que empreendeu uma expedição científica entre o Rio de Janeiro e Salvador, de 1815 a 1817, ficou maravilhado com o Rio Doce. Ele o conheceu em dezembro de 1815. Estávamos nos primórdios da Revolução Industrial, que ainda não havia alcançado o Brasil diretamente, se bem que as atividades primárias rurais poderiam muito bem levar a Bacia do Doce à situação em que ela se encontra atualmente. Sua viagem da costa até Linhares começou em Regência, hoje famosa pela base do Projeto Tamar. Ele escreveu que, pouco antes de Regência, encontrou "rastros das colossais tartarugas marinhas, que vêm à costa depositar os ovos em buracos cavados na areia." Regência era um posto militar que defendia, na costa, o trânsito de pessoas dos ataques dos temíveis botocudos.
Maximiliano escrevia muito bem, em seu estilo romântico, pintando amplas paisagens. Valho-me de suas palavras para narrar a viagem. "Mal raiara a manhã, e a curiosidade nos impelia a sair e a contemplar o rio Doce, o maior rio entre o Rio de Janeiro e a Bahia. Nessa época, toda a caudal rolava impávida e majestosamente para o oceano; a imensa massa d'água corria num leito que nos pareceu duas vezes mais largo do que o Reno no ponto de maior largura. Poucos dias depois, entretanto, tinha diminuído alguma coisa. Só nos meses chuvosos, principalmente em Dezembro, é que fica tão volumosos; em outras épocas, especialmente após estiagens muito longas, veem-se surgir por toda parte do leito bancos de areia, de que, todavia, não se observa agora nenhum vestígio (...) O rio Doce nasce na capitania de Minas Gerais, formado pela junção do rio Piranga com o Ribeirão do Carmo."
O Rio Reno era sempre usado por ele como padrão para medir os rios brasileiros. Quando conheceu o Paraíba do Sul, considerou-o uma espécie de Reno brasileiro, só que muito mais belo. Como saiu do Rio de Janeiro, ele não conheceu o Rio de Prata, formado pelos Rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Não passando de Salvador, também não conheceu a foz do Rio São Francisco. A bem dizer, o Rio Doce é o maior entre o da Prata e o São Francisco. Em extensão, o Rio Doce tem cerca de 850 quilômetros, enquanto o Paraíba do Sul alcança mais de 1000 quilômetros. Mas, em vazão, o primeiro tem o dobro de volume que o segundo.
Para o naturalista, o rio foi um deleite: "As margens do belo rio são cobertas de espessas florestas, refúgio de grande número dos mais diversos animais. Aí se encontram, comumente, a anta, duas espécies de porco selvagem, 'pecari' ou 'caitetu' e o 'porco de queixada branca', duas espécies de veados e mais de sete espécies de felinos, entre os quais a onça pintada e o tigre negro são as maiores e as mais perigosas."
"Contudo, advertia ele, o rude selvagem botocudo, habitante aborígene dessas paragens, é mais formidável que todas as feras, e o terror dessas matas impenetráveis."
Quanto à navegabilidade do rio, ele não tem propostas como seu colega Auguste de Saint-Hilaire, limitando-se apenas a dizer que, "Para subir o rio Doce na cheia, são necessários quatro homens pelo menos, que impulsionam a canoa por meio de longas varas." Ao partir rumo a Linhares, ele exclamou extasiado: "Em plena manhã, a vasta superfície do rio cintilava ao sol; as margens distantes estavam tão densamente vestidas de selvas umbrosas, que, em todo o percurso vencido, não havia espaço livre onde se pudesse erguer uma casa. Ilhas numerosas, de vários tamanhos e formas, recortavam o espelho das águas; eram cobertas de velhas árvores de frondes luxuriantes (...) Na cheia, a água do rio Doce é turva e amarelada, e produz febres no consenso geral dos habitantes. O peixe é abundante, e mesmo o espadarte sobe muito além de Linhares, até a lagoa de Juparanã, onde é frequentemente pescado."
Na foz, quase não se podia divisar uma margem a partir de outra. Era dezembro, e o rio deveria estar em período de cheia. As florestas eram densas e ricas em biodiversidade. Como no caso do Paraíba do Sul, as águas ficavam barrentas nas cheias. As ilhas dotavam o rio de mais beleza. Quanto às febres, Maximiliano viveu numa época em que as doenças transmissíveis ainda eram atribuídas aos miasmas provenientes das águas. Um peixe marinho, como o espadarte, conseguia subir o rio até a grande Lagoa de Juparanã, que o príncipe não pôde conhecer.
Sem dúvida, o que mais encantou o príncipe naturalista foram as matas que margeavam o rio. "Vinham das florestas os berros de numerosos macacos, sobretudo dos barbados, e dos saí-açus. Vimos aí, pela primeira vez em estado selvagem, as magníficas araras, um dos maiores ornamentos das florestas brasileiras; ouvimos-lhes os gritos altos e estridentes, e as altaneiras sapucaias. Podíamos reconhecê-las à distância pelos rabos compridos, e a brilhante plumagem vermelha refulgia deslumbrantemente sob os raios do sol. Periquitos, maracanãs, maitacas, tiribas, curicas, camutangas, jandaias e outras espécies de papagaios voavam aos bandos, em algazarras, de uma margem a outra, enquanto o grande e majestoso pato almiscarado pousava no ramo de uma Cecropia, na orla da mata, à beira do rio. O talha-mar permanecia imóvel, de pescoço encolhido, nos bancos de areia (coroas); tucanos e surucuás emitiam os altos gritos. Esses animais selvagens e os Botocudos, agora, aliás muito mais raros, são os únicos habitantes das margens do rio. Escasseiam os colonos; apenas em dois lugares se estabeleceram algumas pessoas, suficientemente armadas para a defesa."

         Em 28 de dezembro de 1815, ele estava em Linhares, "ainda um povoado insignificante, apesar do trabalho desenvolvido pelo ministro Conde de Linhares para o seu progresso. Por ordem deste, construíram-se os edifícios numa praça situada em área aberta na mata, perto da beira do rio e sobre a íngreme ribanceira de argila. As casas são pequenas, baixas, cobertas de folhas de palmeira ou de uricana, feitas de barro e não rebocadas. Ainda não tem igreja, sendo as missas oficiadas numa casinhola. No meio da praça formada por edifícios, há uma cruz de madeira, para cuja feitura se desgalhou simplesmente o cimo de uma grande e bela sapucaia, pregando-se uma viga transversal. Os moradores estabeleceram as plantações, parte na mata circunjacente, parte nas ilhas fluviais."

         Nos arredores do povoado, hoje cidade, já existiam grandes fazendas e plantações de cana e de arroz. Ele notou que a mandioca não medrava bem no local. A lavoura pressupõe desmatamento.

         Num balanço final, o naturalista escreveu que "A estada no rio Doce foi, sem dúvida, uma das etapas mais interessantes das minhas viagens pelo Brasil; porque, à margem desse rio, de cenários tão soberbos e tão notável do ponto de vista das riquezas naturais, tem o naturalista muito com que se ocupar e experimentar as mais variadas e agradáveis emoções. Todavia, os frutos de nossas pesquisas teriam sido muito maiores, caso pudéssemos percorrer, sem impedimentos e perigo, essas florestas ainda inexploradas. Dizem não ser fácil encontrarem-se paisagens mais deleitosas do que, por exemplo, a da Lagoa de Juparanã, extenso lago não longe de Linhares, em comunicação com a margem norte do rio por meio de estreito canal. Esse belo lago é mencionado por muitos escritores antigos."

         Sobre a Lagoa de Juparanã, Freyreiss, seu colega de expedição, enviou-lhe uma carta, quando o príncipe já havia retornado à Europa, dando-lhe informações sobre ela: "Este, cercado de margens montanhosas, tem perto de sete léguas de comprimento, de sudeste a noroeste, meia légua de largura e de dezessete a dezoito léguas de circunferência. A profundidade é desigual, mas chega, em muitos pontos, a oito a doze toesas. Essa grande massa d'água é formada por um rio e diversas correntes que se lançam no lago, vindos de NNO. Desemboca, próximo a Linhares, através do canal referido, no rio Doce, avolumando-se consideravelmente quando os fortes ventos do sul lhe dificultam o escoamento através do mesmo canal. O fundo e as margens do lago são de areia fina, encontrando-se, aqui e ali, arenitos ferruginosos. A cerca de cinco léguas da entrada, fica uma pequena ilhota de granito, que, devido à distância da margem, não é visitada pelos selvagens, e oferece, por isso, seguro abrigo aos pescadores."+

         Quando Maximiliano passou pelo Rio Doce, as raízes da destruição já estavam lançadas há muito tempo: em Minas Gerais, já havia mineração; as florestas já estavam bastante removidas para dar espaço à agropecuária; em algumas capitanias, a urbanização crescia. Mas o naturalista situava-se num ponto da história que não permitia perceber o estado de destruição alcançado pelo Brasil e pelo mundo. No Brasil, a natureza ainda parecia inesgotável.

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