Drogas e pequenos delitos incham as prisões
Por O Globo
Os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo (2,3 milhões de presos). Tradicionalmente apegado a uma cultura de encarcerar, qualquer que seja o grau de agravo à lei, o país tem um grande contingente de detentos punidos por pequenos delitos, ou por crimes não violentos. Isso se dá em proporção tão preocupante que o presidente Barack Obama propôs recentemente a reforma do sistema penitenciário americano.
Na ponta dessa política ultrapunitiva, tráfico/porte de drogas — ou seja, crimes ligados ao envolvimento com substâncias proibidas — é um dos principais alimentadores de uma rede de intolerância que se consolidou à sombra da política federal antientorpecentes centrada no viés policial-militar, preconizada pelos EUA.
O país ainda a ela se aferra, e com ela se alinha boa parte dos governos do planeta — em geral, com a adicional e condenável particularidade de as ações punitivas serem também contaminadas por influências sociais discriminatórias (classe, etnia, “raça” e gênero).
Não muito diferente é o perfil do sistema prisional brasileiro, alimentado por uma orientação punitiva que não distingue quem de fato deveria estar preso, em face da gravidade do crime que cometeu, daqueles que, tendo, por certo, a obrigação de acertar as contas com a Justiça, poderiam fazê-lo na forma de penas alternativas.
Isso, com o agravante de que, por distorções na execução penal, por leniência do poder público ou por uma variada gama de dificuldades no âmbito do Judiciário, muita gente que deveria estar recolhida à cadeia permanece em liberdade. Assim como nos EUA, o comércio/uso de drogas é o agente mais atuante nesse mecanismo de encarceramento sem critérios.
Em 2006, passou a vigorar no Brasil a nova Lei de Drogas. A legislação tinha por objetivo estabelecer critérios de combate aos entorpecentes centrados mais na guerra ao tráfico do que no consumidor — mas, por subjetiva, acabou por se tornar um instrumento que, em vez de combater a ponta mais nociva, e verdadeiramente criminal da questão, passou a mandar indistintamente para a prisão, praticamente a julgamento da autoridade policial, todo aquele que seja apanhado com alguma quantidade de drogas.
De tal forma que, desde que a Lei 11.343 entrou em vigor até 2013, o número de presos por entorpecentes quadruplicou no país, passando de 31,5 mil detentos em 2006 para 138,3 mil.
Números de 2014, ainda não consolidados pelo Ministério da Justiça, indicam que essa curva de encarceramento se mantém ascendente. De um universo carcerário em torno de 600 mil pessoas, a prisão por envolvimento com venda/uso de entorpecentes no país corresponde a 25% do total de homens e, uma dimensão mais impressionante, 63% entre as mulheres (mais de 70% em São Paulo).
Há processos, por exemplo, em que apreensões de pouca quantidade de drogas, claramente um indício de substância para uso próprio, resultaram em penas de mais de cinco anos. Junte-se a isso outro dado condenável do perfil da população carcerária — as altas taxas de prisões provisórias.
A maior parte delas também se relaciona ao encarceramento por envolvimento com drogas, mas também há casos de gente que furtou objetos de pequeno valor, produtos baratos em lojas, enfim, pequenos delitos.
No Rio de Janeiro, detenções relacionadas ao tráfico, real ou sugerido em boletins de ocorrência nas delegacias, são mantidas em 98% dos casos. É um percentual que vence, de longe, as prisões não definitivas por crimes efetivamente violentos e/ou hediondos, como homicídios.
Dessa falta de critério resulta que o país prende mal, receita que leva a uma explosiva superpopulação carcerária num sistema que convive com um déficit de 231 mil vagas, segundo o Ministério da Justiça.
O caos nas prisões tem ainda, potencialmente, combustível para aumentar, se forem cumpridos, por exemplo, os 192 mil mandados de prisão ainda não executados. Num país com criminalidade em alta, o recurso a penas alternativas e a revisão da Lei de Drogas, atualmente em discussão no STF, são iniciativas inadiáveis.
Abrem-se, com isso, vagas nas prisões para criminosos que realmente ofereçam perigo para a sociedade, e restaura-se o princípio correcional das penas, do que a obediência aos direitos dos detentos é uma imposição.
OS PONTOS-CHAVE
1 - Entre 2006 e 2013, o número de presos por envolvimento com drogas (tráfico e consumo) saltou de 31,5 mil para 138,3 mil.
2 - As prisões provisórias no país, a maioria das pessoas por ligação com entorpecentes, correspondem a 43% da massa carcerária.
3 - Pequenos delitos são responsáveis por detenções que sobrecarregam o sistema carcerário, que tem déficit de 231 mil vagas.
4 - O envolvimento com drogas responde por 63% da população carcerária feminina do país; entre os homens, o percentual é de 25%.
5 - As prisões provisórias por ligação com drogas são mantidas em 98% dos casos.
Editorial de O Globo em 2 de novembro de 2015.
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