Colhidos sempre na armadilha dos seus repetidos erros
E ele diz que as próprias dinâmicas que impelem os EUA em direção ao conflito de hoje são, precisamente as mesmas de antes (durante a crise dos mísseis em Cuba: a inabilidade para perceber como o 'outro' percebe os EUA; a recusa a reconhecer a verdade do 'outro' e o relato 'do outro', da história - ou a inabilidade até para perceber que pode haver outra 'verdade' por aí pelo mundo, seja onde for, diferente da 'verdade' dos EUA.
Em resumo, os norte-americanos assumem como autoevidente que o povo russo pense e compreenda exatamente do mesmo modo como os norte-americanos pensam e compreendem. E os russos hoje só podem estar necessariamente errados, porque, se não estivessem errados, como seria possível que não pensassem nem compreendessem as coisas como os norte-americanos pensam e compreendem, quer dizer: 'racionalmente'? E se os russos agem de modo contrário ao que os norte-americanos creem que devessem agir - não é porque vejam as coisas de outro modo; é porque são beligerantes.
O que mais chama a atenção no que Polk escreveu sobre "lições que os EUA não aprenderam" é que também um ex-alto funcionário russo acaba de nos dizer exatamente a mesma coisa (que os EUA parecemos estar repetindo o mesmo perigoso padrão que levou à Crise dos Mísseis russos em Cuba).
William Polk escreve:
"Aquelas armas eram defensivas ou de ataque? Quero dizer, eram ameaça montada contra a União Soviética; ou defesa do "Mundo Livre"? Meus colegas no governo dos EUA entendiam que fossem armas de defesa. Eram parte de nosso sistema de "contenção". Montamos tudo aquilo para nos proteger, não como ameaça contra os russos.
Os russos pensavam de modo completamente diferente. E, como resposta ao que viam, decidiram estacionar alguns dos mísseis deles em Cuba. Os estrategistas soviéticos acreditavam que, ao criar equilíbrio contra os nossos mísseis postos junto à fronteira deles, os mísseis deles também seriam defensivos; assim como os nossos, nas fronteiras deles, nos pareciam defensivos. Os EUA pensamos de outro modo. Para nós, o movimento dos russos, de pôr mísseis junto às fronteiras dos EUA, sempre seria inquestionavelmente ofensivo. E por pouco não fomos à guerra, para obrigar os russos a remover de Cuba aqueles mísseis.
Foi assim naquele momento - e é assim hoje: Qual é a percepção que EUA e União Europeia têm sobre o que estão tentando fazer na Ucrânia? Estão tentando "criar uma Ucrânia orientada pelo ocidente, integrada, próspera, territorialmente una, segura e democrática".
Muitos europeus veem esse objetivo como - simplesmente - reflexo do impulso gravitacional 'civilizacional' da União Europeia. Os russos pensam de outro modo.
Os russos sabem bem dos profundos cismas que dividem a Ucrânia, de ódios antigos. Pensam que o ocidente está usando essas velhas animosidades para criar uma plataforma ofensiva mediante a qual o ocidente tentará enfraquecer a Rússia. Então a liderança russa reage: aumenta a segurança em torno da histórica base naval russa em águas temperadas; e reage com força no Donbass, contra um governo de Kiev hostil. E volta a mesma pergunta: a reação russa foi ofensiva ou defensiva?
Para a Rússia, os seus próprios movimentos são defensivos (de fato, são existencialmente defensivos).
O ocidente vê as coisas de outro modo: vê os movimentos dos russos como ameaça contra toda a ordem europeia do pós-guerra, nada menos que isso. Então, o ocidente posicionou seus 'mísseis' junto à fronteira russa. Mas nessa nova modalidade de guerra, não se trata literalmente de bombas, como as que William Polk viu na Turquia, já na pista e com turbinas ligadas; trata-se agora dos 'bombardeiros' do Tesouro dos EUA, carregados com bombas de nêutrons financeiros: as tais sanções, pensadas para causar dano aos lucros futuros que a Rússia poderia auferir da venda dos hidrocarbonos. Para o ocidente, é ação de 'contenção', ato 'correcional', que levará a Rússia a 'arrepender-se' do 'mau comportamento' de antes.
Para os russos, é absolutamente outra coisa: para os russos, é movimento de ataque; é guerra. Guerra contra o presidente Putin e guerra contra a própria Rússia.
A Rússia portanto reage conforme sua percepção, defensivamente: e cria um sistema paralelo de finanças, comércio e câmbio, com a China.
O ocidente não entende assim, e o preço do petróleo cai em quase 1/3. Para o ocidente, não passa de reação técnica ante condições de mercado. Os russos, relembrando o modo como a Arábia Saudita operou para derrubar o preço do petróleo em 1986, o que empurrou a União Soviética para a implosão financeira, pensam de outro modo.
Os russos relembram o passado e sabem que entraram num túnel em escalada que pode, sim, levar à guerra. Pode ser guerra 'a quente', ou nova modalidade de 'guerra' comandada pelo Tesouro dos EUA.
Assim sendo, quais as lições da Crise dos Mísseis Russos em Cuba que poderiam nos guiar dessa vez, quando Kiev já teve suas eleições, e o Donbass, suas contraeleições; quando Kiev ostenta suas forças armadas reequipadas; e o Donbass, as suas milícias rearmadas e reabastecidas?
A primeira lição que William Polk extrai disso tudo é que - diferente, ao contrário da narrativa convencional - os EUA não obrigaram Khrushchev a recolher seus mísseis, graças a alguma potente exibição de força. A verdade é que os EUA silenciosamente removeram seus mísseis Júpiter da Turquia; depois disso, a URSS retirou os seus mísseis de Cuba.
Absolutamente não foi - ao contrário do que reza o folclore - um caso de a URSS ter-se recolhido sob pressão.
Na verdade, depois da crise, quando os eventos foram postos em perspectiva, analisados como se fossem um jogo, para deles extraírem-se as lições que houvesse, os oficiais norte-americanos compreenderam que - se Kennedy tivesse insistido na escalada (em vez de iniciar a desescalada) - os EUA e a Rússia teriam entrado em guerra: a mais devastadora guerra nuclear.
Por quê? Porque quando se analisaram friamente os eventos, ficou comprovado que a teoria da 'contenção' baseava-se em pressupostos antropomórficos viciosos.
Estados não 'pensam' como se fossem indivíduos: há neles uma comunidade com história diversificada tecida de incontáveis fios, que reflete uma variedade de saberes e práticas e tradições comunitárias. O Estado não age necessariamente como um indivíduo agiria, especialmente se o tal 'indivíduo' for concebido como 'racionalista' avesso a risco e maximizador de utilidades. Em vez disso, Polk e seus colegas concluíram que estavam tendo de lidar com lideranças-com-comando [orig. ruling leaderships]. E essas lideranças, por uma vasta variedade de fatores psicológicos e competitivos, podem simplesmente concluir que não podem pagar o custo de 'ser o primeiro a piscar' - e custe o que custar, sejam quais forem os riscos.
O resumo final de tudo isso é o perigo que advém de assumir (falsamente) que, dado que todos partilhamos basicamente os mesmos órgãos sensoriais, todos percebermos o mundo de modo semelhante. A 'realidade' é escorregadia demais para que as coisas sejam assim. O que para um parece leitura evidente de uma situação, e atos racionais e defensivos, pode deslizar, na percepção do 'outro', até alcançar o polo extremo oposto: e aparecer como pura agressão. O tema básico de William Polk é que todos devemos nos manter atentos a o quão rapidamente o que é 'defensivo' gera o que é 'agressivo' em nossas políticas exteriores.
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