"Estamos combatendo uma ideologia, não um regime."
- John Kerry, secretário de Estado dos EUA
"Vamos deixar bem claras duas coisas: o ISIL não é "Islâmico". Nenhuma religião prega o assassinato de inocentes, e a vasta maioria das vítima do ISIL foram muçulmanas. E o ISIL com certeza não é Estado. Foi antes afiliado da al-Qaeda no Iraque, e extraiu vantagens da luta sectária e da guerra civil na síria, para ganhar território dos dois lados da fronteira Iraque-Síria. Não é reconhecido por nenhum governo, nem pelo povo que subjuga. O ISIL é organização terrorista pura e simples. E não tem qualquer outra visão além do massacre de todos que se interponham no caminho dele."
- Barack Obama, presidente dos EUA
Falando claro, mas claro mesmo: a premissa básica do presidente Obama (e de Kerry), de que os EUA e aliados estão combatendo uma ideologia desviante, não islâmica, que deve e pode ser deslegitimada reunindo contra ela o mundo árabe sunita para que a declare "não islâmica" só faz provar e comprovar o quão pouco a dupla realmente SABE sobre o
ISIL - contra o qual estão indo à guerra.
No Islã não existe "verdadeiro Islã". Jamais houve qualquer autoridade central no Islã que pudesse definir tal entidade. Para o melhor e para o pior (principalmente para o melhor), o Islã sempre teve muitas faces. Mas, paradoxalmente, há hoje uma orientação que, sim, é a única que se apresenta como o tal 'verdadeiro Islã': o
wahhabismo.
Como observa o professor
As'ad AbuKhalil:
"O que Mohammed Ibn 'Abdul-Wahab dizia e repetia - e seus seguidores dizem e repetem hoje - é que os homens com a espada julgam em nome de Deus na terra, e sobre todos os assuntos, dos maiores aos menores. É onde o Reino Saudita e o ISILcombinam perfeitamente. Estão fora dos limites do Islã mainstream, porque se recusam a conceder, sequer, que falam só como representantes de uma seita. Os wahhabistas (de todas as bandeiras) protestam até contra o adjetivo "wahhabistas": "somos os únicos muçulmanos", dizem. Significa que só eles são muçulmanos, e o resto do mundo é povoado por kafirs [incréus] que têm de ser combatidos como os antigos pagãos do tempo de Maomé. Os wahhabistas dizem que representam o 'verdadeiro Islã', quando a força do Islã ao longo das eras sempre esteve no fato de que jamais existiu essa coisa de 'o verdadeiro Islã'."
Assim sendo, só a Arábia Saudita - e o
ISIL repete - insistem nessa noção de 'verdadeiro Islã que Obama-Kerry tentam ressuscitar. Apenas para registrar a informação: essa comunhão de ideias deriva de a Arábia Saudita e o
ISIL partilharem uma mesma base doutrinal, "O livro do monoteísmo",
texto chave de Abd al-Wahhab.
Em resumo, o
ISIL é tão wahhabista quanto o rei Abdullah da Arábia Saudita. Há aqui, sem dúvida, uma engraçada ironia: Obama e Kerry estão aí, super empenhados na tarefa de tentar "deslegitimar" a própria doutrina da qual nasceu o reino saudita!
Fato é que o defensor-promotor do "verdadeiro Islã" e guardião de Meca é também fiel zelador do "mesmo" Islã que o
ISIL. Como poderia o rei Abdullah denunciá-lo?
Ao mesmo tempo, como pode alguém supor que algum muçulmano, que vive familiarizado com essas questões e conhece a fundo essas discussões, algum dia levará a sério essa 'conversa' de Obama-Kerry?
E SIM, SIM, O ISIL É ESTADOJohn Kerry estaria certo se dissesse que a al-Qaeda é uma ideologia, não um regime. Mas erra sobre o
ISIL. Diferente da al-Qaeda que só tinha "uma ideia", o
ISIL tem projeto e objetivos claros: estabelecer o "principado" de Deus aqui e agora. Tem uma doutrina para como fazer existir tal estado (extraída das guerras lançadas para estabelecer o Estado Islâmico original); controla hoje território maior, em tamanho, que a Grã-Bretanha; tem
consideráveis recursos financeiros; tem exército muito bem armado e equipado (cortesia dos EUA, da Grã-Bretanha e outros); tem comandantes militares competentes; e tem um líder que, na opinião de muitos, disse muito bem a que veio (pelo menos, na única ocasião em que se deixou ver em público).
Em resumo, esse desenvolvimento (o "Estado Islâmico") pode, sim, ser problema muito mais grave, com fundamentos muito mais firmes, com muito mais apelo às massas muçulmanas, que a conversa fiada ocidental sobre "bandidos" e "degoladores cruéis" pode(ria) fazer crer.
O verdadeiro alvo dos EUA e seus aliados árabes é o presidente AssadVários estados árabes e do Golfo alistaram-se com Washington para combater o
ISIL, mas exclusivamente porque planejam enfiar um Cavalo de Troia na agenda da "guerra".
Os soldados escondidos na barriga do "cavalo" de madeira estão reunidos - não para dar combate ao
ISIL -, mas para guerra muito diferente. Querem converter a guerra em renovada ofensiva contra o presidente Assad e a Síria. De fato, na reunião preliminar feita em Jeddah, os estados árabes definiram
uma nova arquitetura de segurança árabe que converteria a "guerra contra o
ISIL" em guerra não só contra o
ISIL, mas também contra o presidente Assad e
todos os islamistas (esperam, claramente, empurrar o ocidente para guerra maior contra a Fraternidade Muçulmana, Hamas, Hezbollah, etc.). Em artigo recente, o conhecido colunista saudita
Jamal Kashoggi:
"Pode-se pois dizer que eliminar o ISIL exige também a eliminação de Assad (...) A operação deve visar o aliado de Moscou em Damasco e derrubá-lo, ou preparar o caminho para derrubá-lo (...) Essa talvez seja a explicação lógica de por que a Arábia Saudita aprovou manter campos de treinamento para a oposição síria moderada. É equivalente a declarar guerra indireta ao regime sírio (...) A Aliança de Jeddah [orig. Jeddah alliance] é a oportunidade de um recomeço, para todos. Não se limita à tarefa imediata de eliminar o ISIL, mas também inclui a possibilidade de expansão no rumo de reformar a situação no Iraque e na Síria."
A posição dos EUA é nuançada: não será de "coordenação" com Damasco, mas vai "desconflitar" [orig.
deconflict] (palavras de Kerry) a relação com Damasco.
As Forças Armadas sírias são comprovadamente efetivas, em termos militares, e os EUA sabem disso; e, afinal "o único jogo na cidade" (como se diz) é o
ISIL. Assim sendo, os EUA, ao que parece, concederam - como migalha jogada ao Golfo, para mantê-lo engajado - que os sauditas de certo modo modificassem a "guerra contra o
ISIL" e a reorientassem na direção de derrubar o presidente Assad.
Essa reorientação combina confortavelmente com a narrativa de 'desculpas preventivas' do Golfo, de que o
ISIL não seria alguma espécie de movimento neo-wahhabista de vanguarda, mas, meramente, uma "reação" natural dos sunitas, brotada das políticas sectárias de Assad e do ex-primeiro-ministro Maliki do Iraque.
A Arábia Saudita - como contribuição para derrotar o
ISIL - pois treinará e armará 5 mil oposicionistas "moderados" para que retornem à Síria. Os EUA compreendem perfeitamente bem que o objetivo desses "moderados" (como se seus patrocinadores sauditas) será derrubar Assad - não combater o
ISIL (com os quais os "moderados" sírios
já estão entendidos e coordenados em campo e já têm um
pacto de não agressão).
O exército sírio tem 130 mil soldados, mais 100 mil auxiliares. Não é que as brigadas sauditas sírias - até aqui
sem registro de sucesso em campo - possam derrubar o presidente Assad, mas deixará a política dos EUA ainda mais incoerente e a Síria ainda mais ensanguentada.
Se há dois protagonistas na Síria - o Exército Árabe Sírio e o
ISIL - então os EUA não têm escolha: é seu dever preferir Assad. Mas os EUA não podem fazer tal coisa, sem ofender a Arábia Saudita. Então os EUA entram nessa guerra com um braço amarrado às costas (pelos próprios árabes do Golfo, 'aliados' dos EUA).
No quintal sírio tão estrategicamente importante para o
ISIL, os EUA
não têm parceiro visível e direto - de fato, como
comentou Ryan Crocker, ex-embaixador dos EUA no Iraque e na Síria: "Temos de fazer todo o possível para descobrir quem é a oposição [síria] não-
ISIL. Francamente, não temos nenhuma pista" - mas só podem trabalhar com Assad
de modo indireto e que possa ser completamente negado (o que os EUA já estão fazendo).
Mas os EUA não podem, de fato, acalentar qualquer esperança de derrotar o
ISIL nas atuais circunstâncias - e com os 'aliados' no Golfo (e muitos
think-tanks também '
aliados') fazendo de tudo para turvar as águas e meter dentro da Síria o próprio exército de 'moderados' treinados pelos sauditas, para enfraquecer Assad; enquanto isso, Kerry vai "desconflitando" a coisa com o presidente da Síria.
Ataques aéreos dos EUA vistos como antissunitas, não como anti-ISILMesmo no Iraque, as limitações da coalizão anti-
ISIL já se vão tornando mais visíveis. Ataques aéreos ali serão vistos, não como ataques contra o
ISIL mas como ataques contra as próprias comunidades sunitas nas quais o
ISIL fundiu-se e nas quais mergulhou. (O
governo iraquiano já teve de suspender ataques aéreos, pela mesma razão.)
Os xiitas iraquianos defenderão seus territórios com o máximo vigor, mas podem bem decidir não entrar no Vale do Eufrates, que tem longa história como coração do território de sunitas militantes. Bagdá não quererá converter a guerra em total conflito sectário, e a guerrilha
Peshmerga não terá nem desejo nem meios para fazer mais do que proteger as próprias comunidades. Em resumo, o
ISIL pode vir a descobrir que, na verdade, não há desejo regional algum de reparar a fratura do Iraque; que a região só deseja, mesmo, que a fratura seja contida e não aumente.
O ISIL NÃO AMEAÇA OS EUATudo isso considerado, o Estado Islâmico é algum tipo de ameaça? Vale a pena recordar que, diferente da al-Qaeda, o objetivo primário do
ISIL não é tanto provocar os EUA para uma super-reação, até a implosão (como Bin Laden acreditava que a guerra no Afeganistão tivesse feito à União Soviética).
O
ISIL não é, obviamente, indiferente aos EUA, mas o seu foco principal é implantar o Principado de Deus na Terra e instituir a Lei de Deus. Não surpreende que vários funcionários do governo dos EUA digam que o
ISIL não ameaça, atualmente, a pátria norte-americana.
Ao
ISIL o que interessa é ganhar território por meios militares, firmar e dar segurança às suas fronteiras, eliminar a idolatria e a heresia e implantar fisicamente, no mundo real, um Califato.
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