A maior privatização da História do Brasil
Por Ivan Valente, Deputado Federal PSOL/SP
24.10.2013
Vivemos
no dia de ontem (21/10) um momento histórico. Infelizmente, não
poderemos nos orgulhar dele. Assim como, nos anos 1990, vimos a entrega
do patrimônio nacional e de setores estratégicos para mãos privadas,
reeditamos o receituário neoliberal da era FHC, desta vez levado a cabo
por um governo eleito pela esquerda, mas que consolidou sua virada
histórica para o outro lado.
Por Ivan Valente, Deputado Federal PSOL/SP
Vivemos
no dia de ontem (21/10) um momento histórico. Infelizmente, não
poderemos nos orgulhar dele. Assim como, nos anos 1990, vimos a entrega
do patrimônio nacional e de setores estratégicos para mãos privadas,
reeditamos o receituário neoliberal da era FHC, desta vez levado a cabo
por um governo eleito pela esquerda, mas que consolidou sua virada
histórica para o outro lado. Mas mesmo o partido tucano poderia invejar o
que aconteceu nesta segunda-feira, pois todas as suas privatizações
juntas, incluindo Vale e Telebrás, não chegarão à magnitude da entrega
do Campo de Libra.
Com o uso das tropas da Guarda Nacional e
do Exército brasileiro, o governo Dilma consumou na tarde deste dia 21
de outubro o leilão do campo de Libra na Bacia de Campos (RJ), a maior
reserva já descoberta no pré-sal brasileiro, com um potencial que pode
chegar a 12 bilhões de barris no total. A estimativa inicial de extração
de 1 milhão de barris por dia foi elevada para 1,4 milhão de barris por
dia pela diretora-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), Magda
Chambriard.
Para
se ter uma ideia do volume de petróleo (de altíssima qualidade) aí
contido, a extração diária de Libra sozinha pode representar 65% da
produção atual. E o volume total de petróleo deste campo equivale a tudo
o que já foi extraído pela Petrobras desde a sua criação, há 60 anos, e
ao total das reservas do México, segundo o Heitor Scalambrini Costa,
doutor em energia e professor da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE
A riqueza de Libra é avaliada em R$ 3
trilhões, e por estas dimensões gigantescas, o Leilão do Campo de Libra
representa a maior privatização da história brasileira, com valores e
potencial de extração muitas vezes superior a privatização da Vale do
Rio Doce, considerada uma das maiores mineradoras do mundo e a maior
privatização da era FHC.
Em
pronunciamento de quase 8 minutos em TV aberta na noite de ontem, a
presidente Dilma exibiu com seu típico tom triunfalista números que
refletem o otimismo conveniente de quem acabou de entregar o maior
patrimônio material do país para desfrutar dos benefícios de curto
prazo. "Isto é bem diferente de privatização", disse Dilma, que joga com
números que, até se comprovarem por meio da própria produção do
petróleo do pré-sal, são fictícios e expressam não apenas a necessidade
de colher dividendos políticos, mas também a própria dificuldade do
governo em legitimar o próprio privatismo. Mas claro, como justificar um
estelionato eleitoral de tamanha envergadura, quando todos sabem que a
presidente venceu as eleições de 2010 condenando as privatizações do
PSDB e acusando seu adversário de querer fazer o mesmo com a Petrobras e
o pré-sal?
Pois
bem. Um consórcio de cinco empresas - a anglo-holandesa Shell, a
francesa Total, as chinesas CNPC e CNOOC e a Petrobras - foi o ganhador
do leilão. Este consórcio, que competiu sozinho, pois não houve outros
interessados, arrematou o leilão pela oferta mínima prevista no Edital,
que é o repasse de 41,65% do óleo excedente a ser produzido para a
União. Por lei, a Petrobras obrigatoriamente seria operadora de Libra e
teria participação de 30% da área. Com a oferta de 10% feita pela
empresa, a estatal passa a ter 40%, as empresas chinesas ficam com 20%, a
Shell com 20% e a Total com 20%. Ou seja, 60% do maior campo do pré-sal
está em mãos de empresas estrangeiras, com direito a 35 anos de
exploração de suas riquezas.
Segundo
o diretor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP (IEE) e
ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras no governo Lula, Ildo Sauer, o
Estado brasileiro pode deixar de arrecadar até R$ 331,3 bilhões em 35
anos com o leilão do pré-sal. O cálculo considera o modelo de partilha,
previsto para o leilão; royalties de 15%; imposto de renda de 34% sobre o
lucro; bônus de assinatura de R$ 15 bilhões, conforme determinado em
edital; preço do barril de petróleo a US$ 160; e dólar a R$ 2,20. O
cálculo não leva em conta taxa de juros e inflação.
Em
outros cenários, com o preço do petróleo mais alto ou mais baixo que o
estipulado, as perdas podem variar. Com o barril a US$ 60, o governo
deixaria de arrecadar R$ 176,8 bilhões; se o barril valer US$ 105, as
perdas do governo são de R$ 222,3 bilhões. Disfarçando tamanho prejuízo,
Dilma vai a TV comemorar o ganho de R$ 15 bilhões em bônus pela venda
da maior reserva brasileira de petróleo de alta qualidade. Bônus estes
que serão utilizados para garantir a meta de superávit do governo
brasileiro, em grande parte destinada ao pagamento da famigerada dívida
pública.
O
abismo entre o discurso oficial e a realidade é difícil de ser
explicado para o grande público, e assim o governo joga com a
desinformação, pois, como se sabe, o diabo mora nos detalhes. Para quem
não ignora os meandros da negociata e nem faz o papel de ideólogos do
governo, no entanto, a comparação com as privatizações de FHC não são
apenas superficiais, mas revelam um modelo fundamentalmente semelhante.
Trata-se de modelo tão temerário que, inclusive dentro do PT é possível
encontrar vozes dissonantes, como a do ex-presidente da Petrobras, José
Sérgio Gabrielli.
Segundo
ele, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e o Ministério das Minas e
Energia (MME), para entregar às multinacionais a maior reserva do mundo,
estão, premeditadamente, contornando e trapaceando a nova lei do
petróleo, assinada por Lula em 2010. Em entrevista ao blogueiro Paulo
Henrique Amorim, Gabrielli afirmou que "quando houve a transformação do
regime regulatório do petróleo no Brasil, em 2010, essa mudança ocorreu
porque, com a descoberta do pré-sal, os riscos de exploração passaram a
ser pequenos. (...) O regime anterior, o regime de concessão [lei nº
9.478, de 1997] era adequado para áreas de alto risco exploratório. Esse
regime exige, na entrada, um bônus alto, porque o concessionário passa a
ser o proprietário do petróleo a ser explorado - e, portanto, ele vai
definir a priori quanto vai dar ao Estado".
Trata-se,
portanto, de um engodo. O modelo que conta com o "bônus de assinatura"
serviria caso houvesse risco para as empresas de que não existisse
petróleo. Mas já está comprovado que existe um oceano de petróleo no
pré-sal, qual o sentido, então, de se pagar para procurar um petróleo
que todos sabem que já existe? Além do mais, a descoberta já foi feita
pela própria Petrobras, contratada pela ANP, "que fez as perfurações
exploratórias iniciais, já tem uma cubagem mais ou menos conhecida com
volume e potencial já conhecidos, e ele é hoje não só o maior campo do
mundo, mas da História. Se você pensar em um preço de valor adicionado
(preço de exploração) de 10 dólares o barril, vezes, por baixo, 10
bilhões de barris, são 100 bilhões de dólares".
Com
a nova lei (lei nº 12.351 de 2010), que instituiu o regime de partilha
de produção para o pré-sal, como aponta Gabrielli, "à medida que você
coloca um bônus muito alto, a partilha do lucro no futuro é menor. Ao
fixar o bônus alto, você tem uma visão de curto prazo, na exploração e
no desenvolvimento de um recurso que já tem o grau de confirmação muito
alto - não há dúvida de que tem petróleo lá". Ou seja, mesmo com a
certeza da existência do petróleo, o governo submete todo o ganho
potencial futuro do Estado a uma parcela menor. Nessa operação de R$ 15
bilhões, o governo vai receber de imediato, mas no lucro do futuro, o
governo vai ficar com uma fatia menor.
Evidentemente,
num campo com tal reserva, o lucro do futuro é imenso e muito maior que
esses R$ 15 bilhões. O valor que deveria ser pago em bônus, mais o de
investimento para a instalação das plataformas de exploração, serviram
de argumento pelo governismo para justificar a privatização, já que
segundo eles a Petrobras "não teria recursos para investir sozinha".
Ildo
Sauer defende que a Petrobras deveria assumir a exploração do pré-sal
sozinha, e não em consórcio com empresas estrangeiras. Segundo ele, a
estatal brasileira é a empresa mais capacitada do mundo para fazer
exploração de petróleo em águas ultraprofundas, e poderia obter
empréstimos junto a bancos. Como afirmou em entrevista ao jornalista
Luiz Carlos Azenha, nenhuma empresa pode arcar com estes custos, sendo
que tomar empréstimos é exatamente o que as companhias privadas farão.
"De fato, a Petrobras fará o trabalho pesado - tem tecnologia e
conhecimento para isso. As parceiras terão, lá na frente, um lucro
desproporcional ao investimento feito agora."
Ainda
segundo Sauer, não dá para calcular, ainda, exatamente com quanto o
Brasil ficará da produção de Libra, o que seria por volta de 60%, quando
o padrão internacional para empresas estatais é de 80% (no caso da
PDVSA venezuelana e da Aramco, da Arábia Saudita). Seria diferente se,
por exemplo, o governo tivesse optado por contratar a Petrobras
diretamente, o que está previsto em lei.
Alguns
ideólogos do governo petista chegaram inclusive a atribuir à presença
de empresas chinesas um caráter "anti-imperialista" ao modelo de
partilha. Entre os "argumentos" estaria o de que a presença da China
deixaria a IV Frota do EUA longe da costa brasileira, ou de que a China,
em sua busca por recursos naturais, teria uma "relação de troca" com o
Brasil por meio de estímulos ao empreendedorismo etc. Houve até quem
questionasse se entregar para estatais chinesas seria ainda assim
privatização. Trata-se de uma grande piada, ou desonestidade intelectual
pura e simples.
Como
afirma Sauer, o interesse da China em relação à exploração de petróleo é
convergente ao dos Estados Unidos, pois ambos são grandes consumidores
de petróleo e precisam de preços mais baixos no mercado internacional.
Em um mundo onde o preço do petróleo é determinado - para cima - pelos
países associados à Opep, a entrada do Brasil na produção de petróleo em
larga escala e em curto prazo faria o preço cair. Ou seja, além de
servir indiretamente aos interesses de EUA e China, o Brasil tem, dentro
do consórcio que fará a exploração, os chineses, que são também
consumidores.
Há ainda a questão dos royalties
associada ao pagamento dos juros da dívida pública brasileira. Segundo
Rodrigo Ávila, economista da Auditoria Cidadã da Dívida, os royalties
- dos quais 75% iriam para Educação e 25% para a Saúde - equivalerão a
apenas 15% da produção, e somente serão obtidos quando o Campo de Libra
começar a operar plenamente, o que ocorrerá apenas por volta de 2019.
Além do mais, o governo federal já não tem destinado os recursos dos royalties
para as suas finalidades legais, mas em grande parte para o pagamento
da dívida pública, o que pode ocorrer novamente com o Campo de Libra.
Além
do mais, Ávila lembra que, do valor arrecadado pela União com a parcela
do "excedente em óleo", apenas 50% serão destinados para as áreas
sociais, pois a outra metade será destinada para aplicações financeiras,
preferencialmente no exterior (por meio do chamado "Fundo Social"), e
apenas o rendimento destas aplicações será aplicado nas áreas sociais.
"Se é que haverá rendimento, dadas as baixas taxas de juros no mercado
internacional e a abundância de papéis que podem se mostrar "podres" da
noite para o dia, em um ambiente de Crise Global", questiona o
economista.
Todos
os movimentos sociais comprometidos com a defesa da soberania nacional
foram contrários ao leilão de Libra, assim como os petroleiros, que
continuam em greve e a quem manifestamos todo o nosso apoio e
solidariedade.
Importante
ressaltar ainda que a Petrobras já foi em grande parte privatizada,
pois seu lucro é distribuído preponderantemente aos investidores
privados, e a parcela pertencente à União deve ser utilizada
obrigatoriamente para o pagamento da dívida pública, conforme manda a
Lei 9.530/1997.
Quando
o governo FHC promoveu a grande privataria dos anos 1990, um dos
argumentos era o de que era necessário ter caixa para pagar os
compromissos e respeitar os contratos. Isso implicou na entrega a preços
módicos de setores estratégicos da economia - que hoje dão lucros
extraordinários aos seus donos privados - em nome do curto prazo,
comprometendo o futuro do país. Pois há apenas uma diferença em relação
ao que fez o governo Dilma: o tamanho da privatização, que agora pode
ser considerada a maior da História. Os benefícios de curto prazo que
são agora incorporados ao ufanismo oficial cobrarão o seu preço das
gerações futuras.
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