O anúncio oficial, postado no
website do Sistema de Comércio e Câmbio da China [ing.
China Foreign Exchange Trade System (CFETS)] acrescenta uma nota, tremendamente significativa, segundo a qual a
CFETS planeja introduzir sistemas
PVPs para transações de yuan com outras moedas cujas bases são países incluídos na Iniciativa Cinturão e Estrada.
Assim se confirma o que discuti em artigo que postei em abril de 2016, a saber, que o grande projeto por trás da Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) tem um componente essencial de moeda com lastro ouro que pode mudar o equilíbrio global de poder a favor das nações da Eurásia, da Rússia e das nações da União Econômica Eurasiana, até a China e por toda a Ásia.
Antes chamada Nova Rota Econômica da Seda, a ICE é hoje uma vasta rede de ferrovias de alta velocidade que está em construção cruzando em todas as direções os países da Eurásia, incluindo Ásia Central, Mongólia, Paquistão, Cazaquistão e, claro, a Federação Russa e estendendo-se ao Irã, potencialmente também à Turquia e África Oriental. No total até agora 67 países já participam ou solicitaram a integração ao ambicioso projeto cujo custo total pode chegar a trilhões de dólares e transformará o comércio global. O [banco] HSBC estima que o projeto ICE de infraestrutura, que hoje reúne países que geram quase 1/3 do PIB mundial, chegará a gerar mais $2,5 de trilhões de novo comércio anual. Não é pequena mudança, nem mudança só nos detalhes: é mudança de primeira ordem, das que viram o jogo.
Construir um dólar moeda de reserva
Sou homem de rala paciência, e apresentações acadêmicas da teoria da moeda e da teoria da moeda de reserva tendem a me parecer tediosas. Mas esse movimento de compensação direta de moedas que China e Rússia estão ativando é dos movimentos mais dinâmicos de virada no jogo tradicional, desde que o Tesouro e os bancos de surgiram com o sistema do EUA-dólar em Bretton Woods em 1944.
Não se trata de reduzir riscos monetários no comércio entre Rússia e China. O comércio entre eles nas respectivas moedas, deixando o dólar à margem, já é significativo, desde que os EUA sancionaram a Rússia em 2014 - movimento muito tolo do Tesouro do governo Obama. Trata-se agora de criar vastas zonas de moedas de reserva alternativas ou zonas independentes do dólar.
O "século Norte-americano" que o editor de
Time-Life Henry Luce proclamou em 1941 nasceu no fim da guerra. Em 1945, quando parou de chover bombas sobre a Europa e o Japão, o presidente Harry Truman deixou claro para a Inglaterra que não haveria espaço para o Império Britânico como concorrente, ao cancelar os créditos que EUA ainda distribuíam e exigindo que a Grã-Bretanha, falida, pagasse a Washington suas dívidas de guerra, além de exigir redução dramática no comércio mundial feito em libras esterlinas, que então ainda correspondia a cerca de 50% do total do comércio mundial. Os britânicos depositaram em sua Commonwealth em sua zona preferencial de comércio em libras todas as esperanças de reconstruir o Império Britânico.
Para Washington e Wall Street, depois de 1945 só houve espaço para uma potência monetária dominante, os EUA. A Grã-Bretanha foi forçada a engolir seu enorme orgulho arrogante e voltar-se para o Fundo Monetário Internacional recém-criado e para, passo a passo, desmantelar as colônias do Império Britânico, a começar pela Índia, por razões financeiras. Isso abriu a porta para a hegemonia do dólar sobre a economia mundial externa aos países comunistas. Desde 1945, o poder dos EUA como superpotência global dependeu de dois pilares - a mais poderosa força militar; e o dólar como moeda mundial de reserva não discutível, para permitir que Washington controlasse a economia mundial.
Em 1944, o Federal Reserve incorporou cerca de 70% do ouro-moeda mundial como parte de suas reservas. Todas as demais moedas eram ancoradas ao dólar. Só o dólar era ancorado ao ouro. Um mundo de pós-guerra faminto de dólares nos 1950s desperadamente precisava de dólares para financiar a reconstrução. O dólar começou sua ascensão como moeda que os bancos centrais acolhiam como moeda de reserva ou moeda-âncora, ajudados pelo fato de os países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, OPEP, terem aceitado vender o próprio petróleo exclusivamente em dólares. A maior parte do financiamento do comércio mundial era feito em dólares.
Nixon e a Grande Inflação do dólar
Nos termos de Bretton Woods, o Federal Reserve dos EUA garantiram que outros países que tivessem reservas em dólares poderiam trocá-las por ouro a qualquer momento. Ao final dos anos 1960 essa situação começou a vir abaixo, quando a França e outros países exigiriam ouro em troca do que lhes pareciam ser EUA-dólares inflacionados. A indústria dos EUA enferrujava pela falta de novos investimentos, e os déficits do Fed-EUA cresciam sem parar por causa da Guerra do Vietnã. Outras nações já começavam a também não aceitar que "o dólar vale como ouro". Exigiram o ouro real, não algo que valeria 'como ouro'.
Depois do "Choque Nixon", quando o presidente Nixon pôs fim ao Acordo de Bretton Woods em agosto de 1971 para deixar flutuar o dólar, livre de qualquer equivalência em ouro, o mundo não teve escolha se não aceitar o dólar-papel inflacionado, inflação que explodiu com o choque do preço do petróleo de 1973 cerebrado pelo secretário de Estado Henry Kissinger e a facção Rockefeller da política dos EUA. A suspensão da conversibilidade ouro-dólar foi reação de Washington ao fato de que os bancos centrais de França, Alemanha e outros países da
OECD estarem exigindo mais e mais ouro do Fed, pelos dólares-papel que tinham em poder delas, e as reservas dos EUA em ouro estavam ameaçadas de ser esvaziadas.
Aqui começam as raízes da mais extraordinária grande inflação global de toda a história. Começando nos déficits de orçamento dos EUA durante a Guerra do Vietnã nos anos 1970s e no aumento de 400% nos preços do petróleo em 1974, preço que o Tesouro dos EUA, em negócio secreto com a Arábia Saudita nos anos 1974-75 garantira que seria pago em dólares pelo resto do mundo, a oferta mundial de dólares cresceu astronomicamente. Os dólares em circulação global, já não conversíveis em ouro, cresceram 2.000% entre 1971 e 2015. Em lugar algum a produção de bens cresceu sequer perto de 2.000%.
O fato de o dólar ainda ser a mais significativa moeda de reserva dos bancos centrais estrangeiros, ainda 64% de todas as reservas mundiais hoje, com o euro em 20%, concorrente mais próximo, dá ao governo dos EUA uma vantagem extraordinária.
Desde 1971, os EUA administraram déficits no orçamento em 41 dos últimos 45 anos, exceção feita aos quatro anos nos anos 1990, quando a geração Baby Boom alcançou o pico de renda e de pagamento ao Fundo de Segurança Social. O Tesouro de Clinton manipulou a contabilidade de modo a apresentar esse efeito único como imposto de renda geral do Tesouro, o que é fraude. Um ano sim, outro não, desde 2001 o orçamento dos EUA volta a apresentar déficits monstro, superior a $1,4 trilhão só em 2009, e de $1,400 bilhão durante a crise financeira que começou em 2008. Em 2000, antes da separação dólar/ouro, o déficit dos EUA era de $3 bilhões.
Com muita razão, outros países veem isso como enorme desvantagem. Seus investimentos em bônus do Tesouro em EUA-dólares para reservas dos respectivos bancos centrais vão-se tornando papel sem valor. Porque são mais ou menos obrigados a investir os dólares do superávit obtido das exportações nos seguros papéis do Tesouro dos EUA ou em EUA-
securities similares, o influxo anual dos dólares do banco central da China - os dólares do superávit comercial japonês, ou dólares russos antes de 2014, ou Alemanha e outros países que têm superávit comercial - permitem que o Tesouro dos EUA mantenha as taxas de juro anormalmente baixas. E isso permite que Washington financie aqueles déficits sem maior estresse. Esse ano, o déficit dos EUA alcançou impressionantes $585 bilhões.
Implica que, nos últimos anos, China e Rússia financiam o orçamento militar dos EUA comprando ações e papéis dos EUA que permitem que o Tesouro financie aquele déficit sem ter de subir as taxas de juros. A ironia cínica é que o orçamento militar dos EUA financiado pela necessidade que Rússia e China têm de manter reservas em dólar contra possíveis guerras de moeda que Washington faça contra elas, como foi feito contra a Rússia depois de 2014, tem o objetivo de controlar Rússia e China e, no fim, de destruir aquelas duas economias.
Se a lei que Trump planeja de cortes de impostos virar realmente lei, os déficits dos EUA alcançarão a Lua. Esse é o quadro que se tem de compreender para compreender melhor o que China e Rússia e países aliados estão preparando com o objetivo de reduzir a vulnerabilidade respectiva a algo que viaja em trajetória balística rumo à bancarrota do sistema dólar de reserva global. Se China, Rússia e outros países aliados da Eurásia, mais especialmente os países da Organização de Cooperação de Xangai e membros à espera de serem efetivados, como Irã e Turquia, voltarem-se para arranjos bilaterais como China e Rússia para as compensações comerciais, deixando de fora o EUA-dólar, o dominó do dólar como moeda de reserva mundial cairá, e outras moedas o substituirão. A principal candidata é o yuan chinês. O rublo também.
Status de reserva do yuan
O mais recente movimento na direção de compensação direta de comércio bilateral entre China e Rússia com outros países ao longo da nova Rota da Seda sem inserida no sistema é uma pedra das mais fundamentais na criação de alternativa viável para o EUA-dólar como moeda de reserva de ancoramento.
Há uma década, tal ideia seria descartada como ridícula pelos economistas ocidentais. Diziam que ainda faltavam décadas para que o mundo aceitasse o yuan como moeda de reserva. O yuan não era conversível.
Em 2016, a China foi admitida pelo Fundo Monetário Internacional como uma das cinco principais moedas, numa cesta de moedas entre as quais o FMI calcular seus
Special Drawing Rights. Aquele movimento deu importante impulso na direção de o yuan ser aceito internacionalmente.
Antes de 2004, o yuan não circulava fora da China. Desde então, as autoridades monetárias chinesas preparam cuidadosamente uma base para a internacionalização do yuan. Segundo a Sociedade para Telecomunicação Financeira Interbancária Mundial [ing.
Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT)], a internacionalização da moeda chinesa está acontecendo em três fases - primeiro, na finança comercial; depois, para investimento; e depois, como moeda de reserva.
Agora, aquele "longo prazo" já parece extraordinariamente curto prazo, com a China já superando todas as expectativas de economistas convencionais, com a internacionalização de seu yuan. A possibilidade próxima de o yuan tornar-se moeda âncora global, ou moeda de reserva, ultrapassando a parte do euro nos próximos poucos anos é o que está alarmando - para dizer o mínimo! - o Federal Reserve e os bancos de Wall Street.
Em relatório de 2016, o banco HSBC noticiou que, desde 2012 o yuan RMB tornara-se a 5ª moeda mais amplamente usada como moeda para pagamento.
Há dois anos, em outubro de 2015, a China deu início ao Sistema de Pagamentos Internacionais da China [ing.
China International Payments System (CIPS)]. No acordo de cooperação que o país assinou com o sistema dominante
SWIFT, há uma opção potencial, para o caso de os EUA imporem sanções à China, de que o sistema chinês independentemente do
SWIFT. Em 2012, a pressão que Washington fez sobre o sistema privado
SWIFT, com sede na Bélgica, de compensação internacional e pelo qual praticamente todas as transações internacionais entre instituições bancárias passam, para que bloqueasse a compensação internacional de todos os bancos iranianos, congelou no exterior $100 bilhões em fundos iranianos e limitou a capacidade do país para exportar petróleo. Pequim e Moscou não deixaram de ver o que ali se passava, especialmente quando um daqueles doidos no Congresso dos EUA exigiu que o sistema
SWIFT excluísse os bancos russos, depois de 2014.
Em março desse ano, Elvira Nabiullina, presidente do banco central da Rússia, fez saber que "Concluímos o trabalho para nosso próprio sistema de pagamentos, e se alguma coisa acontecer, todas as transações no formato
SWIFT serão operadas dentro do nosso país. Criamos uma alternativa."
Criar a nova arquitetura monetária
As demandas financeiras da vasta Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE, alcançam os trilhões de dólares. Só na Ásia, o Banco de Desenvolvimento Asiático estima que são necessários investimentos de $8 trilhões ao longo dos próximos anos, para empurrar aquelas economias para patamar de crescimento eficiente. A criação, por Pequim, ano passado, do Banco Asiático para Infraestrutura e Investimento, BAII (ing.
Asian Infrastructure Investment Bank, AIIB) foi grande passo na direção de assegurar financiamento internacional para o projeto Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE.
Em abril de 2016, a China anunciou sua decisão de estabelecer a Bolsa de Ouro de Xangai [ing.
Shanghai Gold Exchange], subordinada ao Banco do Povo da China, como grande centro internacional para estabelecer o preço do ouro e o câmbio do ouro em yuan, com compensação em ouro físico entre bancos bullions
[2], refinadores, produtores e casas comerciais. Acrescenta-se a isso a decisão, da China, de lançar um preço diário fixo para o ouro denominado em yuan, o qual, na prática, acabará por deslocar o 'ouro fixo' dominante de Londres, sistema que há anos vem sendo acusado de manipular os preços mundiais do ouro.
Ao anunciar sua Iniciativa Cinturão e Estrada, o governo da China, num comentário pouco repercutido na mídia-empresa, lembrou que as rotas de seus projetos para ferrovias de alta velocidade pelos países da Eurásia farão a conexão entre (i) países da Eurásia hoje ainda remotos e inacessíveis, muitos quais são conhecidos pelas jazidas ainda não exploradas de ouro, e (ii) os mercados mundiais -, tudo assim previsto na Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE.
O que China e Rússia estão fazendo nada tem a ver com atacar o EUA-dólar para destruí-lo. É altamente improvável que essa destruição beneficiasse alguém. Trata-se, isso sim, de criar moeda de reserva independente e alternativa para outras nações, que já começam ativamente a cuidar de autoproteger contra os ataques financeiros lançados contra o resto do planeta pelo Tesouro dos EUA e pelos bancos e fundos
hedge ["fundos abutres", como disse a então presidenta Cristina Kirscher da Argentina (NTs)] de Wall Street.
Trata-se de construir um elemento crucial da soberania nacional, porque o sistema EUA-dólar está sendo usado já quase rotineiramente para devorar a soberania econômica do resto do mundo. Como Henry Kissinger teria dito nos anos 1970s, "Se você controla o dinheiro, você controla o mundo todo".
Agora, o anúncio que governo chinês está fazendo, de que seu sistema de compensações Pagamento
vsPagamento será estendido a outros países da Iniciativa Cinturão e Estrada, ICE, acrescenta mais um tijolo na cuidadosa construção desse sistema monetário alternativo, uma alternativa com lastro em ouro, independente do explosivo sistema do EUA-dólar, que pode 'vacinar' as nações da Eurásia, tornando-as resistentes a ataques de guerra financeira que partam de Washington e da União Europeia, em anos vindouros.
Eis o que hoje mantém Washington em sobressalto perpétuo. A cada dia que passa, menos opções lhe restam. Ataques militares, ataques financeiros, ciberguerra, revoluções coloridas - todos esses recursos são cada dia mais impotentes, manipulados por país que deixa que a própria base industrial e de capital humano ser completamente destruída, para atender interesses de uma oligarquia financeira.
Bem assim acabou o Império Romano no século 4º, e também o Império Britânico entre 1914 e 1945, e bem assim acabaram todos os impérios da história que investiram tudo na servidão da dívida.*****
20/10/2017, F. William Engdahl, New Eastern Outlook, NEO