Artigo no Alerta Total
Por Carlos I. S. Azambuja
Confúcio, de passagem pelo Estado de Wu, quando perguntado o que faria primeiro se convidado a governar aquele país, respondeu: “Como primeiro passo, faria com que as coisas fossem chamadas pelos seus verdadeiros nomes”.
Em 23 de agosto de 1939, Stalin assinou um Pacto com Hitler. Em 1 de setembro, Hitler invadiu a Polônia. Em 17 de setembro Stalin invadiu a Polônia e dividiu-a com Hitler.
Em qualquer tentativa para conhecer ou compreender os russos soviéticos, o primeiro passo será abolir toda confusão de termos e chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. Como Lenin profetizou “depois da morte dos chefes revolucionários populares entre as classes oprimidas, seus inimigos tentam apoderar-se de seus nomes para iludi-las”. Foi exatamente o que aconteceu. O Soviete Supremo, que oficialmente apoiava o castigo, pela servidão penal, de um operário acusado de assinar o ponto 20 minutos mais tarde, em seu trabalho, ou porque se atrasara ao voltar do repouso do almoço, ainda apelava em todas as esferas possíveis, para os nomes de Karl Marx, Friedrich Engels e V. I. Lenin.
Muito cedo, o Estado dos Trabalhadores transformou-se no Estado onde os trabalhadores fazem todo o trabalho. E a “ditadura do proletariado” transformou-se, sem nenhuma contradição possível, na ditadura sobre o proletariado; o “socialismo”, conforme foi definido por Stalin em tantas palavras, passou a significar “desigualdade”. Embora tudo isso, o primeiro S de URSS permaneceu, sem se envergonhar nem se compungir.
Para se compreender o comunismo tem-se de entrar na forma do pensamento comunista e penetrar não somente em seu sentido, mas no sentido do sentido das palavras e frases familiares aos comunistas.
Na prática de todas as línguas civilizadas há um acordo em que “direita” significa a favor do capital, e “esquerda” a favor do trabalhador e do camponês. Como é possível, então, que um regime a favor do capital e antitrabalhador se chame “esquerdista”? Lendo nos jornais qualquer declaração dos líderes soviéticos, somos forçados a conhecer não o que as palavras significam, mas o que elas não significam, mas o que os senhores comunistas decidiram, arbitrariamente, o que elas deveriam significar. Confúcio hoje ficaria em suspenso com esses escritores...
Por que se prenderam os comunistas russos aos rótulos do “esquerdismo” e do “marxismo”, depois de abandonarem o marxismo? São dois os motivos principais: a) os comunistas têm uma Causa Sagrada, e ninguém com uma Causa Sagrada é digno de confiança; b) os comunistas possuem um conjunto encantador de terminologia, que seria uma pena jogar fora. Custe o que custar, a Causa Sagrada, seu ritual e ladainhas, devem ser conservadas, di-lo Lenin com uma franqueza desusada e com profética candura, para iludir as “massas oprimidas”. A eficácia da guerra fria da propaganda nos países anda não subjugados é devida, em grande parte, ao encanto extraordinário dessas expressões revolucionárias, contra as quais o mundo livre nada tem a oferecer em comparação.
A razão precípua por que foi tão fácil efetuar a inversão dos significados está em que os comunistas têm uma Causa Sagrada. Desde que o Estado Revolucionário se tornou proprietário dos meios de produção, qualquer mulher grávida que chegue atrasada à fábrica porque não conseguiu encontrar lugar num trem superlotado, não é somente uma “negligente”, “indolente” ou “vadia”. O que fez foi “sabotar a produção socialista” e, em teoria, é uma “inimiga do Estado” e “inimiga do povo”. Fazer qualquer coisa contra a autoridade e a disciplina do Estado é, assim, ”cometer um crime contra o povo”.
A maior descoberta dos chefes comunistas foi a palavra “povo”, em cujo nome tudo pode ser feito. É possível, então, atirar na classe trabalhadora em nome do povo, ou ferir o povo em nome da classe trabalhadora. Um exemplo disso foi a declaração do chefe comunista da Polônia, Cyrankievicz, durante a greve de Poznam, em 28/29 de junho de 1956. Os operários de Poznam entraram em greve por causa da fome. Depois de matar 38 operários e ferir 270, Cyrankievicz declarou: “Se alguém ousar levantar o braço contra a soberania do povo, esta mesma soberania o amputará, pelo interesse do povo trabalhador”. Uma análise mais atenta demonstrará que uma transposição de palavras sem significado por parte do chefe comunista não traria nenhuma diferença apreciável. Se ele tivesse dito ”a soberania do povo trabalhador amputará este braço pelo interesse do povo”, seria a mesma coisa.
O próprio Kruschev salientou naquele discurso histórico de 1956, que a expressão “inimigo do povo” foi inventada por Stalin e meramente significava qualquer pessoa que Stalin, o Sol e Pai do proletariado, quisesse executar.
Naturalmente, algumas das palavras objetivas mais simples têm um significado já geralmente aceito e recusam receber gratuitamente seu sentido às avessas. Palavras tais como “estômago” e “igual”. Nesse caso, nada pode ser feito senão pegar o touro pelos chifres. Dos usos mais grotescos, nada é mais divertido do que a posição oficial tomada pelo comunismo em relação à questão da igualdade dos estômagos, em tamanho e apetite em todos os seres humanos.
O Partido simplesmente decide que “não é assim”. No dia 12 de março de 1954, o Rude Pravo, de Praga, censurou os membros do Partido por favorecerem “reivindicações social-democratas baseadas em teorias antiquadas de que todos os estômagos são iguais”. E esse não foi um exemplo isolado. Em maio do ano seguinte, Frantisek Zupka, presidente de um sindicato, informou que os trabalhadores checos manifestavam um “social-democratismo” ao reivindicar “a pretensão de que todos os estômagos são iguais. Há, pois, tais pretensões. Imaginem!
Essa referência, relativamente branda, a teorias antiquadas sobre a igualdade dos apetites de todos os seres humanos e da idêntica sensação de fome – essa referência é possível porque há 20 anos passados, quando o Primeiro Plano Quinqüenal já estava sendo aplicado, Stalin formulou a doutrina da Desigualdade Social e dirigiu a luta contra a igualdade de rendimentos -. Stalin era um realista e teria sido um presidente de primeira classe da General Motors.
Finalmente, havia um motivo justificável para a conservação da fraseologia revolucionária depois que o Partido Comunista da Rússia Soviética se encaminhou pela estrada da contra-revolução. A razão era que o marxismo havia elaborado uma verdadeira série de termos muito fascinantes, efetivos e atraentes. Em todos os tempos e em qualquer idioma a expressão ”a solidariedade do proletariado internacional” ou “a soberania das massas revolucionárias”, têm uma ressonância admirável.
Simpatizantes do comunismo em todos os lugares, tanto na China quanto nos EUA, sentiam um orgulho científico, e mesmo um encanto literário só em escrever ou falar esses chavões, da mesma forma que um médico interno se alegra ao mencionar, casualmente, em conversa com seus colegas, expressões tais como “trombose cardíaca” ou “puerpério da mulher” (nada mais que o resguardo pós-parto).
As palavras, uma vez criadas, podem fazer-se independentes de seus criadores. Ficam em voga e têm vida própria. Algumas vezes o frasco é mais bonito do que o seu conteúdo, e depois que este foi usado não se tem coragem de jogá-lo fora. Foi o que aconteceu com as palavras intrépidas e emocionantes do marxismo na Rússia Soviética.
Sabe-se que seu conteúdo está esgotado, que o frasco socialista nada mais contém, mas não se tem a coragem de desprezar termos revolucionários tão bonitos, uma vez que essas palavras adquiriram um valor de ostentação, um incremento involuntário. Obviamente, não se abandona uma expressão como “proletariado revolucionário”. Valorizará o discurso de qualquer orador, em qualquer lugar e em qualquer tempo, e auxiliará a garantir o período de vida de seu discurso.
Eis um glossário de algumas palavras e expressões comunistas e seu sentido aproximado, em uso na literatura comunista:
- Estado do Trabalhador: Aquele em que o trabalhador faz todo o trabalho;
- Centralização Democrática: Sistema de organização no qual o Congresso do Partido deve prestar contas à Comissão Central, a Comissão ao Politburo, o Politburo à Secretaria Central, e a Secretaria Central a ninguém;
- Ditadura do Proletariado: Uma ditadura na qual tudo é realmente ditado ao proletariado e, ademais, isso lhe agrada;
- Proletariado: Aqueles que comem a menor ração, mas produzem o maior trabalho. Proletariado decadente: aqueles que comem demais e produzem de menos. Solidariedade Internacional: expressão excepcionalmente refinada, referindo-se à unidade e à boa vontade dos trabalhadores de todas as nações para receberem ordens de um país estrangeiro.
- Dialética: Método de raciocínio, ou evolução, ou qualquer conclusão sobre algo que se sabe “que não é assim”.
- Transição: Processo de transformação socialista pelo qual um presente muito penoso garante um futuro muito feliz.
- Oportunismo: Qualquer tendência oposta à cruel destruição do inimigo.
- Contra-Revolução: Quase tudo com o que não se concorda.
- Arte e Literatura anti-socialista: Qualquer arte que brote espontaneamente de um impulso criador, sem relação com interesses políticos.
- Realismo Socialista: Romantizar sobre as condições da classe operária.
- Traidor: Um polonês que ama a Polônia, um húngaro que ama a Hungria mais do que a pátria do Comunismo Internacional.
- Profilaxia Político-Social: Morte ou deportação de grupos de pessoas que são elementos potenciais da oposição e que poderão vir, algum dia, cometer crimes, apesar de não tê-los cometido ainda.
- Ordem de Lenin: Condecoração conferida a pessoas de evidentes méritos. Exemplo: Yagoda, que foi dirigente do KGB.
- Expurgo e Extermínio de Espiões: Persuasão disfarçada da maioria pela minoria. Exemplo: o XVII Congresso do PC Soviético, no qual 2/3 dos delegados e 2/3 dos membros da Comissão Permanente foram mortos ou desapareceram.
- Julgamento: Processo legal facultativo, interessante principalmente como manifestação da identidade entre polícia, investigador, acusação, defesa, juiz e carrasco.
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O texto acima é um resumo do capítulo “Os Verdadeiros Nomes”, do livro “O Nome Secreto”, de autoria de Lin Yutang, editado no Brasil em 1961 pela Editora Itatiaia Ltda.
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.