Jeremy Salt*, Al-Ahram Online, Cairo
http://weekly.ahram.org.eg/News/2688/21/The-Syrian-crisis-option.aspx
A realidade – que não aparece nos veículos da imprensa-empresa mundial – é que as forças ‘rebeldes’ estão já em colapso e que o regime de Assad impôs-se contra as gangues armadas por estrangeiros que invadiram a Síria. Assad e seu governo estão vencendo a guerra. Assim sendo, o que fará o ocidente?
Por mais que repita que ‘todas as opções estão sobre a mesa’, Barack Obama já tenta claramente se afastar de qualquer envolvimento mais profundo na Síria, agora que já se vê que só um ataque direto, intervenção com ocupação militar, conseguirá derrubar o governo de Damasco. Só nos últimos meses, as gangues armadas perderam milhares de homens. Embora o conflito ainda se prorrogue por algum tempo, não há dúvida, entre os especialistas, de que o Exército Sírio está já muito próximo de controlar completamente o levante.
Os patrocinadores dessa aventura estão em total confusão. Como, antes, a Coalizão Nacional Síria já implodira, agora também o Conselho Nacional Sírio já implodiu. Muaz Al-Khatib já é voz apenas marginal. Ghassan Hittu é o único ser no planeta a ostentar o título de primeiro-ministro de um comitê. Toda essa gente é causa completamente perdida.
No mundo real, não no mundo dos delírios, há um vídeo de horror em que se vê um comandante ‘rebelde’ que corta o peito e come, ou pelo menos morde, o coração de um soldado morto. Discute-se se seria um pulmão, talvez o fígado. Os jornais parecem inseguros; dão a impressão de que seria importantíssimo identificar com precisão o exato órgão mastigado. Longe de tentar negar a autoria do ato canibalesco, o perpetrador assume e apropria-se dele e vangloria-se de como retalhou, em pedaços, vários cadáveres de shabihas.
O canibalismo parece ser a mais recente inovação, mas a verdade é que não há o que os psicopatas armados das incontáveis gangues não tenham feito dentro da Síria. Ou, talvez, não se devesse chamar de psicopatas homens capazes de fazer o que fizeram? Afinal, quem mais se deixaria arregimentar para guerra tão absolutamente sem sentido, além de psicopatas?
O autodefinido Exército Sírio Livre diz que caçará o homem que arrancou o coração do soldado. Ótimo. Que cace também os ‘rebeldes’ cortadores de gargantas e ‘rebeldes’ degoladores em geral. Que cace os ‘rebeldes’ que assassinaram funcionários públicos, antes de jogar os cadáveres pelas janelas do prédio dos correios em Al-Bab. E aproveite para caçar também seus próprios companheiros de armas que deliberadamente jogam carros-bomba contra civis.
E que não se esqueça de caçar os assassinos do imã e de 50 fiéis que rezavam numa mesquita em Damasco. E, ainda, os estupradores e sequestradores, inclusive os chechenos que sequestraram dois bispos ainda mantido em cativeiro em Aleppo, enquando os líderes cristãos dos governos ocidentais fingem que nada têm a ver com aquilo. Na caçada dos bandidos que macularam a gloriosa reputação do Exército Sírio Livre, aliás, nem é preciso procurar muito longe, porque há inúmeros bandidos bem ali, nas próprias fileiras. Provas não faltam. A imprensa tem vasta coleção de macabros vídeos nos telefones celulares e câmeras de mão, imagens de rostos muito facilmente identificáveis, porque eles se orgulham muito do que fizeram e querem exibir-se para o mundo. Essa é a gente que a Arábia Saudita e o Qatar dedicaram-se a armar pesadamente, e carregaram de dinheiro, para que tomassem a Síria.
Essa é a realidade por trás da narrativa de ficção e mentiras que a empresa-imprensa global distribuiu para o mundo ao longo dos últimos dois anos. Nenhum jornalismo: só a regurgitação de cada mentira, de cada exagero, de cada distorção produzida por ‘ativistas’ e pelo chamado Observatório Sírio de Direitos Humanos, de Londres – segundo o qual o “regime’ sírio estaria sempre a ponto de desabar, várias vezes por dia; e todas as atrocidades eram sempre, sempre, obra dos soldados sírios. Exceto por alguns poucos artigos assinados recentemente por Robert Fisk, praticamente nenhum veículo de nenhum grande grupo da imprensa-empresa comercial no mundo ocidental noticiou eventos e comentou o conflito do ponto de vista do exército e do governo da Síria.
Jornalistas eram conduzidos através da fronteira por grupos ‘rebeldes’ e só faziam repetir o que os tais ‘rebeldes’ (eventualmente, canibais) lhes contavam. É como acreditar em tudo que escreviam os ‘jornalistas’ incorporados às tropas do exército dos EUA, como se o que relataram fosse o que realmente acontecia no Iraque. E, também como no Iraque, repetem agora a mesma propaganda sobre “armas químicas”.
Até que, afinal, a mentira sucumbiu, e a realidade apareceu. Quem está em colapso não é o governo de Assad, mas os ‘rebeldes’. Daqui em diante, só a intervenção militar armada e direta, com coturnos em solo, conseguirá salvar os ‘rebeldes’. Mas, com o governo sírio já contando com sólido apoio dos russos... não será fácil pôr coturnos norte-americanos em solo sírio. Obama continua pressionado para “fazer mais”, mas não dá qualquer sinal de interesse em deixar-se sugar ainda mais para o fundo do pântano criado pelos seus ‘rebeldes’ na Síria. E outros não darão nem meio passo, se os EUA não marcharem à frente. A Alemanha já se declarou contra qualquer envolvimento; a Áustria disse que já está fornecendo armas aos ‘rebeldes’, o que a Grã-Bretanha gostaria de ter feito, e que, antes do fim do embargo na União Europeia, que terminará dia 31 de maio em curso, é violar leis internacionais.
Essa semana, todos os holofotes concentraram-se sobre o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e a viagem que fez a Washington para discutir a Síria com Barack Obama. A Turquia teve papel central no desenrolar do conflito sírio. Arábia Saudira, Qatar e Libya forneceram dinheiro e armas, mas foi a Turquia, cujo território ficou aberto para a mobilização de gangues armadas que cruzavam a fronteira para depor o “regime”. Erdogan não se afastou um passo da posição que assumiu contra Bashar Al-Assad há mais de dois anos. O único caso claro de uso de arma química em ataque foi o composto de cloro embalado numa ogiva e disparado contra um posto do Exército Sírio em Khan Al-Assal, que matou vários soldados e civis. Mas Erdogan continua a repetir que foi o Exército Sírio que usou armas químicas e que, ao fazê-lo cruzou a tal “linha vermelha” que Obama inventara. Perguntado, pouco antes de partir para Washington, se apoiaria a implantação de uma zona aérea de exclusão, respondeu: “Desde o início diríamos que sim.”
Semana passada, carros carregados com mais de uma tonelada de C4 e TNT foram explodidos na província de Hatay, na cidade fronteiriça de Reyhanli. Foram mortas, no mínimo, 51 pessoas. A destruição foi massiva. Prédios da administração municipal e dúzias de lojas ficaram soterrados nos escombros. Na sequência, carros com placas sírias foram destruídos e refugiados sírios atacados por grupos da região, enfurecidos. Enquanto destruíam, amaldiçoavam Erdogan. A atrocidade seguiu um padrão já familiar aos sírios: uma primeira explosão e em seguida, quando as pessoas se aproximam para socorrer os feridos da primeira explosão, a segunda bomba, para aumentar o número de vítimas.
Apesar de o governo turco ter declarado que teria sido trabalho de um grupo terrorista que colaboraria com a inteligência (mukhabarat) síria, só as gangues armadas ou um dos governos que as apoia teria algum motivo para cometer tamanha violência. O Exército Sírio está cercando os ‘rebeldes’, o “conselho dos traidores” baseado em Doha já implodiu, e norte-americanos e russos estão sentando para conversar. Aquele ataque foi claramente planejado e executado para atrair a Turquia diretamente para o conflito, através da fronteira.
O ataque contra Reyhanli aconteceu uma semana depois que Israel lançou uma série de ataques selvagens contra a Síria. Não foi simples ataque de um míssil. Dois ataques em três dias, durando cada um várias horas, com bombardeio cerrado em torno de Damasco, sugerem fortemente que o objetivo era provocar resposta dos sírios, o que abriria a porta para guerra generalizada, na qual até o Irã poderia ser atacado. Israel alegou que o alvo seria um carregamento de mísseis destinados ao Hizbullah, mas, embora um centro de pesquisa e uma fábrica militar de produção de alimentos tenham sido atingidos, não se viu nem sinal de que algum míssil tivesse sido destruído. Os ataques revelaram-se fracasso político e estratégico. Imediatamente, na sequência, Putin aplicou “uma carraspana” em Netanyahu e o castigou, ou fornecendo ou ameaçando fornecer à Síria mísseis antiaéreos avançados S300. Só a insuperável arrogância do governo israelense explica que tenha insistido que outros ataques viriam, se necessários, e que destruiriam o governo sírio, caso houvesse retaliação.
Obama está agora sob pressão doméstica para “fazer mais”. Em Washington, os mesmos que clamavam por guerra contra o Iraque clamam pela ampliação do conflito na Síria. O senador Bob Menendez, empenhado apoiador de Israel, como virtualmente todos os congressistas, apresentou projeto de lei que autoriza o governo dos EUA a fornecer armas aos ‘rebeldes’ (como se os EUA já não estivessem fazendo exatamente isso clandestinamente, diretamente ou usando a Arábia Saudita e o Qatar). O ex-editor do New York Times, Bill Keller, apoiou abertamente a guerra do Iraque e agora quer também que os EUA armem “os rebeldes” e “defendam os civis ameaçados de ser massacrados dentro das próprias casas” na Síria. Não fala, é claro, dos civis massacrados pelas gangues já armadas.
O Washington Post acabou por ter de admitir que o Exército Sírio está em marcha vitoriosa para controlar o conflito, mas nem por isso desiste de tentar mudar o rumo dos acontecimentos. “E se os EUA não intervierem na Síria?” pergunta em editorial, para poder responder-se, o jornal a ele mesmo: a Síria será fraturada, partida em várias áreas sectárias; a Frente Jabhat Al-Nusra assumirá o controle no norte e “remanescentes do regime” ficarão com faixas na parte oeste. A guerra sectária se espalhará e alcançará o Iraque – como se isso já não tivesse acontecido, consequência da invasão norte-americana – e o Líbano. Armas químicas cairão em mãos erradas, “o que provavelmente forçará Israel a intervir, para impedir que cheguem às mãos do Hizbullah ou da Al-Qaeda”. E, se os EUA não intervierem logo, para impedir que tudo isso aconteça, Turquia e Arábia Saudita “poderão concluir que os EUA já não são aliado confiável”.[1]
Há outras respostas muito mais prováveis àquele “o que acontecerá”. O Exército Sírio expulsará do território sírio os “rebeldes” sobreviventes; e Bashar resultará ainda mais popular do que antes, depois de ter enfrentado com sucesso o maior desafio que se impôs ao Estado sírio em toda a sua história. Haverá eleições em 2014. Bashar será eleito presidente com 75% dos votos. Essa, pelo menos, é a previsão da CIA.
Erdogan chegou a Washington também desejando que Obama “faça mais”, mas é mais do que claro que o presidente dos EUA não quer fazer coisa alguma, muito menos, mais. A imprensa-empresa turca noticiou que Obama dissera que Assad “tem de” sair [orig. “must”], mas não foi o que Obama disse. Obama escolheu muito atentamente cada palavra. Na conferência de imprensa ao lado de Erdogan, ele não disse que Assad “tem de” sair; disse que Assad “precisa” [orig. “needs”] ir e “precisa” transferir o poder para um corpo transicional. É diferença absolutamente importante. Pessoalmente, Obama não quer chegar ao fim de seu governo afundado numa guerra impopular, que os EUA não vencerão, guerra que, além do mais, pode muito rapidamente extrapolar o plano regional e converter-se em crise global.
Pesquisa recente do Instituto Pew mostrou que o povo norte-americano já não tolera guerras no Oriente Médio. E a conversa entre Kerry e Lavrov indica que, dessa vez, já deixado para trás o Acordo de Genebra de julho de 2012, os EUA estão seriamente interessados em negociar um fim para a crise na Síria, mesmo que outros não considerem ainda sequer essa possibilidade. Se há alguma ameaça a pesar contra a posição dos EUA, o mais provável é que esteja crescendo entre seus amigos e aliados.
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* Jeremy Salt é professor associado de História e Política do Oriente Médio, na Bilkent University, em Ancara, Turquia.