Rússia desafia a estratégia de 'contenção' dos EUA
De fato, há um contexto extraordinário, no qual políticas e estratégias nacionais russas estão ante uma encruzilhada, e o país tem importantes decisões a tomar e escolhas a fazer. O 'ocidente' está dedicado a impor à Rússia um reset na bússola de suas estratégias nacionais.
6/12/2014, MK Bhadrakumar, Strategic Culture - http://goo.gl/Z5FCfZ
Ao contrário da prática usual em falas de 'o estado da União', nas quais a política externa aparece sem especial destaque, Putin, dessa vez, deu a ela papel protagonista em seu discurso, com longos e elaborados comentários sobre o milieu internacional, para pôr em perspectiva o motivo pelo qual as estratégias nacionais russas precisam ser fortemente recalibradas.
Não surpreendentemente, os comentários focaram sobretudo os desenvolvimentos na Ucrânia ao longo do ano passado, especialmente desde o golpe e a 'mudança de regime' patrocinados pelo ocidente, que derrubaram o governo eleito em Kiev em fevereiro, logo depois de o ex-presidente Viktor Yanukovich ter adiado a assinatura do Acordo de Associação da Ucrânia à União Europeia.
Examinados os eventos à distância, vê-se que a vitória do ocidente não foi mais que miserável vitória de Pirro, porque, embora a União Europeia tenha conseguido que o Acordo fosse assinado pelo novo regime-cliente instalado em Kiev e conduzido por figuras selecionadas a dedo, a Ucrânia inteira, como país, foi irrecuperavelmente desestabilizada - e a tal ponto que, agora, Bruxelas nem pode implementar o acordo. A realidade em campo é que se tornou impossível estabilizar a Ucrânia sem restaurar o cordão umbilical que a liga inapelavelmente à 'Mãe Rússia'.
Putin acusou diretamente os "patrões e patrocinadores norte-americanos" que planejaram e conduzira o golpe para derrubar o governo eleito em fevereiro, na Ucrânia. Mas, comparados a ajuda prestada pelo ocidente à Ucrânia, e os $33 bilhões que a Rússia pôs na economia ucraniana a diferentes títulos ao longo de dois anos... o ocidente nada fez pela Ucrânia na direção de auxiliá-la a completar reformas consideradas indispensáveis. Além de admitir todos os tipos de minigolpes da política mais rasteira, e enunciar promessas cada vez mais pomposas, os EUA recusaram-se peremptoriamente a afrouxar os cordões da bolsa e não ajudaram a economia ucraniana.
Mais que um mero impasse
Mas a parte importante da fala de Putin é outra. Ele disse claramente que a Ucrânia é mais um sintoma de uma estratégia mais ampla dos EUA, que tem o objetivo de complicar as relações da Rússia com seus vizinhos. A Ucrânia foi o álibi para as sanções ocidentais contra a Rússia, mas a agenda real que se vem desenrolando ao longo das últimas décadas sempre foi "tentar conter as crescentes capacidades da Rússia".
Na verdade, Putin lancetou todas as questões mais purulentas das complicadas relações entre Rússia e o ocidente, ao longo dos últimos 25 anos. Foi brutalmente franco sobre a ação de agências de inteligência ocidentais na Chechênia nos anos 1990s, onde apoiaram o separatismo, sempre na esperança de que a Rússia seguisse o "cenário iugoslavo de desintegração e de desmembramento".
O que emerge desse discurso é que Moscou rejeita cabal e totalmente a narrativa dos EUA sobre a Ucrânia. Bem claramente a Rússia não está sendo 'contida' pelas sanções ocidentais e prepara-se para prolongado período de congelamento profundo nas relações com os EUA.
Sanções jamais funcionarão contra uma grande potência como a Rússia, 'globalizadora' ávida, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e país com imensos recursos humanos, intelectuais e materiais.
Mas, será então apenas um impasse? Não. A Rússia vê a luta em curso como luta existencial, não menos terrível e desafiadora que a invasão do país pelas forças de Hitler "decidido a destruir a Rússia e a nos empurrar para trás, para além dos Urais." Putin alertou, em tom de desafio, que a estratégia de contenção do ocidente contra a Rússia terá o mesmo destino que a invasão pelos nazistas. Repetidas vezes disse que a Rússia não aceitará 'ordens' nem argumentos de autoridade, de nenhuma potência.
Um dos tópicos chave dos quais Putin falou foram as tentativas, pelos EUA, para instalar o sistema de mísseis de defesa, o que porá fim ao equilíbrio estratégico de força e à estabilidade ainda vigentes. Putin chamou a atenção para o fato de que, sem se deixar prender na armadilha de uma corrida armamentista com os EUA, a Rússia usará suas capacidades para encontrar "soluções inovadoras" que "de modo confiável e garantido" servirá à defesa da Rússia nas novas condições.
Moscou já não espera que o presidente dos EUA Barack Obama mantenha a palavra e leve o sistema de mísseis de defesa para a mesa de negociações com a Rússia. Assim sendo, a Rússia fica sem outra opção além de recorrer a contramedidas orientadas para frustrar a busca em que os EUA se empenham para obter 'segurança nuclear' e superioridade militar sobre a Rússia.
Quais as opções abertas à política externa russa, nesse quadro? Putin delineou uma abordagem em várias frentes. Numa delas, a Rússia manterá resolutamente a mesma trajetória de política externa independente que projeta há muito tempo e que visa a promover e a proteger "a diversidade do mundo". Equivale a dizer que as políticas russas promoverão ativamente uma ordem mundial multipolar, baseada em estrita obediência à lei internacional e à Carta da ONU, contra a hegemonia dos EUA.
Noutra frente, a Rússia não se deixará prender na armadilha de uma nova Guerra Fria, e não permitirá que seja bem-sucedida a tentativa dos EUA para "criar uma nova cortina de ferro em torno da Rússia". Significa duas coisas: nenhum isolacionismo ou posição de oposição vis-à-vis a Europa ou os EUA; e um esforço sustentado para construir redes extensas e parceiras tanto no ocidente como no oriente.
Mas, dentro desse contexto, a Rússia se concentrará em expandir sua presença em regiões como o Pacífico Asiático, a África e o Oriente Médio ou América Latina. Putin pôs especial ênfase no Pacífico Asiático e tinha a China sempre em mente, embora não a tenha mencionado especificamente.
A pupa tem de transformar-se
A grande pergunta que Putin não fez explicitamente, mas que atravessa todo o seu discurso, parece ser "por que tal e tanta animosidade dos EUA contra a Rússia?" Qual a razão de ser dessa 'estratégia de contenção', pelos EUA, contra a Rússia? Não há dúvidas de que a 'estratégia de contenção' começou muito antes dos tumultos na Ucrânia. Como Putin disse claramente, a coisa começou nos anos de Ieltsin (quando a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, começou a avançar para o leste, para incluir países membros do antigo Pacto de Varsóvia e potências da Guerra Fria).
O coração da matéria é que a Rússia é a grande pedra no caminho da hegemonia global dos EUA. Só a Rússia, nas linhas de qualquer futuro previsível, tem capacidade para forçar algum tipo de equilíbrio estratégico que 'contenha' os EUA - o que frustra as ambições norte-americanas de virem a dominar a ordem mundial e o sistema internacional no século 21. A busca em que os EUA empenham-se há décadas para fixar sua 'superioridade nuclear' e dominar o mundo tropeça sempre no ressurgimento da Rússia no cenário global.
Por outro lado, como grande potência em declínio, sem 'superioridade nuclear', os EUA vão paulatina e ininterruptamente perdendo a capacidade para influenciar na arena internacional, e também perdem a capacidade para impor sua vontade à comunidade mundial. De fato, até países pequenos, como Iraque, Síria, Egito e Iêmen no Oriente Médio já desafiaram os EUA. A América Latina já não é quintal dos norte-americanos. Até com países africanos, os EUA já se veem obrigados a negociar. A muito propagandeada estratégia de 'pivô para a Ásia' está à deriva.
Paradoxalmente, entretanto, os EUA não querem encarar o dilema de ter de se reconciliarem com a ideia de aceitar parcerias em pés de igualdade, com outros países, grandes ou pequenos.
Os EUA arrastaram a Europa para o pântano de seu 'problema russo'.
A confusão na Ucrânia demorará muito tempo até ser resolvida e ninguém sabe o que restará do país, visto daqui a alguns anos. Mas uma coisa é certa: Washington conta com que a Europa permanecerá 'conectada' enquanto, pelo menos, a crise ucraniana perdurar.
No seu discurso, Putin disse bem pouco em direta referência à Europa. Mas, afinal, o que de fato é a Europa hoje? Tem personalidade própria? Voz própria? De fato, a única coisa boa em tudo isso é a persistente esperança de que a pupa, em algum momento, transforme-se.
A Europa se autoagride, ela mesma, no atual confronto com a Rússia. E, mais cedo ou mais tarde, talvez seja forçada a repensar e começar a entender que a Rússia tem interesses legítimos na Ucrânia e que a normalização das relações com Moscou é item crucialmente decisivo para a segurança e a estabilidade de toda a região. A questão é que, diferente dos EUA, que não tem laços comerciais importantes com a Rússia, o grande mercado russo é crucialmente importante para toda a Europa.
Já está ficando mais difícil, para os EUA, meter novas sanções contra a Rússia goela abaixo dos europeus. Há uma minirrevolta na Europa Central contra sanções já existentes contra a Rússia. É improvável que a Europa venha a armar a Ucrânia e a instigar uma guerra entre Ucrânia e Rússia.
Mas a má notícia é que nada sugere que os EUA venham a desistir de sua estratégia de contenção contra a Rússia, nem depois da 'mudança de regime' na Casa Branca em 2017. E o discurso de Putin prepara seu país para um resfriamento profundo e prolongado nas relações com o ocidente.
O leitmotif do discurso é que a Rússia deve mobilizar suas forças interiores, como já fez tantas vezes na história, para defender a própria soberania nacional e seu patrimônio civilizacional.
Em passagem memorável do discurso, Putin falou diretamente à alma profunda dos russos. Disse que a Crimeia é sagrada para a nação russa "como o Monte do Templo em Jerusalém para os seguidores do Islã e do Judaísmo. E assim será a Crimeia, para sempre, para nós."
Os EUA não sabiam disso? Claro que sabiam. E, se precipitaram a crise na Ucrânia, foi com o objetivo assumido de encurralar a Rússia, fechá-la num circuito apertado de nações inimigas, complicar suas relações com a Europa e, de algum modo, forçá-la a capitular. ******
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