'FICHA LIMPA É UMA ROLETA-RUSSA. FARÁ VÍTIMAS POR TODO LADO'
Para o ministro a lei tem falhas e, depois da eleição, terá de ser revista no Congresso
04 de março de 2012 | 3h 08
FELIPE RECONDO / BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo
Crítico de primeira hora da Lei da Ficha Limpa, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes afirma que o Congresso, passadas as eleições, terá de mudar o texto. "Me parece que a Lei da Ficha Limpa vai causar vítimas em todos os partidos com essa amplitude. É uma roleta russa com todas as balas no revólver, feita pelos partidos ", diz.
Em entrevista ao Estado, Mendes defende enxugar os benefícios do Ministério Público que hoje são demanda do Judiciário, como licença-prêmio e auxílio-moradia, critica a falta de critério para os pagamentos de atrasados e afirma que a lei não permite a venda de férias pelos magistrados.
O ministro sugere ainda não ser possível, depois da decisão do STF sobre a Lei de Anistia, discutir a punição a militares, mesmo que a Comissão da Verdade venha a identificar responsáveis por crime s cometidos durante a ditadura militar. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O Congresso deveria mudar a lei? Me parece que a Lei da Ficha Limpa vai causar vítimas em todos os partidos com essa amplitude. É uma roleta russa com todas as balas no revólver, feita pelos partidos. Ainda vamos ouvir falar muitas vezes da Lei da Ficha Limpa. Vamos ter muitas peripécias. Acredito que o Congresso, passado o momento eleitoral, terá que rever essa lei, porque são muitas as perplexidades. O Congresso terá de assumir a responsabilidade em face da opinião pública. O Congresso talvez venha a se conscientizar de que não pode ficar aprovando leis simbólicas.
Que problemas o sr. vê na lei?
Por exemplo, os prazos de inelegibilidade são elásticos e infindáveis. A inelegibilidade pela rejeição de contas de prefeitos, por exemplo, pelos tribunais de contas. Será que isso é bom? Nós sabemos que temos problemas hoje nos tribunais de contas. Há uma excessiva politização e partidarização dos tribunais de contas. Ou nós não sabemos disso?
O senhor considera que possa haver julgamentos direcionados?
Não devemos ser ingênuos a ponto de não imaginarmos que pode haver manipulação. Imaginemos que um político importante seja condenado em primeiro grau numa ação de improbidade. Alguém desconhece a pressão que haverá sobre o tribunal para julgar também nesse sentido e torná-lo inelegível? Pressão eventualmente política, inclusive. Quem conhece a estrutura de alguns tribunais sabe que isso pode ocorrer e vem ocorrendo.
O sr. citaria exemplos disso?
Lembre-se de episódios que foram revelados sobre a antiga composição do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro. O TRE do Rio foi o primeiro a sustentar a necessidade da Lei da Ficha Limpa. À falta de critérios, o tribunal os ia inventando. O que se diz hoje? Que determinados escritórios de advocacia conseguiam limpar a ficha das pessoas no TRE. Isso é objeto hoje de investigação no CNJ. Será que queremos reproduzir esse quadro?
O tribunal pode se deixar contaminar pela opinião pública no julgamento do mensalão?
Tenho a impressão de que não. A minha expectativa é de que isso não vai afetar, embora alguns discursos sugerindo esse tipo de atendimento da opinião pública, como no caso específico da Ficha Limpa, quase levem, no caso do mensalão, a um tipo de juízo condenatório prévio. Tenho impressão de que todos nós estaremos conscientes de nossas responsabilidades.
O mensalão será julgado neste ano? Tenho a impressão de que deveríamos julgar este caso. É um caso que onera o tribunal. Não temos mais justificativa para atrasos. O relator já apresentou o processo, o gabinete do ministro Lewandowski, que é o revisor, é um dos mais organizados do tribunal. Ele dispõe de condições inequívocas de trazer esse processo ainda neste semestre. Todos os ministros estão se debruçando sobre este caso. Portanto, não vejo justificativa para não julgar este caso logo.
Ao se julgar a Lei da Ficha Limpa, falou-se que havia uma pressão popular em favor da lei. Como o senhor vê isso? Não me preocupa a decisão em si sobre a Ficha Limpa, tendo em vista esse alinhamento com a opinião pública. O que me preocupa são fundamentos nesse sentido de que o tribunal deva se curvar à opinião pública. Aí me parece extremamente preocupante, porque isso decreta o falecimento dos argumentos constitucionais. Foi aquilo que, numa brincadeira, disse: o papel do tribunal não é bater palma para maluco dançar. Nós estamos na rota errada quando um juiz diz que tem que atender a anseios populares.
Qual é o risco?
O risco é o tribunal perder a sua função de órgão de controle de constitucionalidade, de tutela dos direitos fundamentais. Essas maiorias que se formam no Congresso, muitas vezes, são ocasionais.
O sr. considera que isso ocorreu na votação da Ficha Limpa?
Olhando a Lei da Ficha Limpa, veremos que ela não teria esse aplauso que teve no passado se fosse votada hoje. Aquele foi um momento muito específico. Era um período pré-eleitoral, a maioria dos membros do Congresso concorreria às eleições e não queria ficar contra a opinião pública. Foi por isso, inclusive, que se produziu essa lei que é, do ponto de vista jurídico, um camelo. É uma lei mal feita. Quem passou por perto dela tem que ter vergonha. Quem trabalhou na sua elaboração tem que ter vergonha. Porque ela é uma lei extremamente mal feita. Não merece o nome de jurista quem trabalhou nessa lei. E o debate no STF serviu para mostrar isso.
Como o sr. analisa o pagamento vultoso de atrasados a juízes?
Esse acúmulo de vantagens gera até uma insegurança jurídica muito grande nos Estados e deve debilitar as finanças estaduais. Não há clareza sobre qual é o numerário necessário para sustentar o Judiciário local. Lembro-me de que a presidente de um tribunal do Nordeste dizia que tinha créditos acumulados de férias em torno de R$ 600 mil. Eu não consegui entender. Isso não existe nos tribunais superiores.
O sr. concorda com esse modelo: um juiz tenha 60 dias de férias, pode vender 30 dias e, passados anos, receber até meio milhão de reais de férias não gozadas?
Em algum momento na história se estabeleceram os dois meses de férias. Mas a lei não estabelece a possibilidade de venda das férias. E o argumento da necessidade de 60 dias de férias briga com a possibilidade de venda.
Os magistrados argumentam que procuradores podem vender férias e licenças-prêmio.
No Ministério Público, a lei prevê os dois meses de férias e a possibilidade de venda, o que gera no Judiciário a busca desse paradigma. A jurisprudência do STF entende que, desde a Lei Orgânica da Magistratura, não há que se falar em licença-prêmio. A despeito disso, alguns tribunais mantêm a licença-prêmio e aceitam a venda. Tudo isso gera esse acúmulo. Na magistratura não se devia raciocinar tentando incorporar os benefícios do MP, mas defender a supressão dos benefícios do MP, benefícios que não são condizentes com a atual cultura institucional.
O sr. defende mudanças?
Vamos ter, em algum momento, que conversar com alguma tranquilidade em relação a isso. Na minha gestão eu já tinha defendido a superação desse modelo de dois meses de férias.
Como o sr. analisa, no debate em torno da criação da Comissão da Verdade, a punição dos responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura militar?
Não vou me pronunciar sobre isso. É uma discussão que tem que se travar no âmbito próprio. A mim me parece que o Supremo deu um equacionamento adequado no debate sobre a Lei de Anistia, ao dizer que esse modelo de anistia fez parte do processo constituinte, não decorre da Lei de Anistia, fez parte da Constituinte. A emenda que convoca o processo constituinte e que dá legitimidade à Constituição de 1988 estabeleceu esse modelo de anistia. Parece que isso responde à questão que está colocada.
'FICHA LIMPA É UMA ROLETA-RUSSA. FARÁ VÍTIMAS POR TODO LADO'
Para o ministro a lei tem falhas e, depois da eleição, terá de ser revista no Congresso
04 de março de 2012 | 3h 08
FELIPE RECONDO / BRASÍLIA - O Estado de S.Paulo
Crítico de primeira hora da Lei da Ficha Limpa, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes afirma que o Congresso, passadas as eleições, terá de mudar o texto. "Me parece que a Lei da Ficha Limpa vai causar vítimas em todos os partidos com essa amplitude. É uma roleta russa com todas as balas no revólver, feita pelos partidos ", diz.
Em entrevista ao Estado, Mendes defende enxugar os benefícios do Ministério Público que hoje são demanda do Judiciário, como licença-prêmio e auxílio-moradia, critica a falta de critério para os pagamentos de atrasados e afirma que a lei não permite a venda de férias pelos magistrados.
O ministro sugere ainda não ser possível, depois da decisão do STF sobre a Lei de Anistia, discutir a punição a militares, mesmo que a Comissão da Verdade venha a identificar responsáveis por crime s cometidos durante a ditadura militar. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O Congresso deveria mudar a lei? Me parece que a Lei da Ficha Limpa vai causar vítimas em todos os partidos com essa amplitude. É uma roleta russa com todas as balas no revólver, feita pelos partidos. Ainda vamos ouvir falar muitas vezes da Lei da Ficha Limpa. Vamos ter muitas peripécias. Acredito que o Congresso, passado o momento eleitoral, terá que rever essa lei, porque são muitas as perplexidades. O Congresso terá de assumir a responsabilidade em face da opinião pública. O Congresso talvez venha a se conscientizar de que não pode ficar aprovando leis simbólicas.
Que problemas o sr. vê na lei?
Por exemplo, os prazos de inelegibilidade são elásticos e infindáveis. A inelegibilidade pela rejeição de contas de prefeitos, por exemplo, pelos tribunais de contas. Será que isso é bom? Nós sabemos que temos problemas hoje nos tribunais de contas. Há uma excessiva politização e partidarização dos tribunais de contas. Ou nós não sabemos disso?
O senhor considera que possa haver julgamentos direcionados?
Não devemos ser ingênuos a ponto de não imaginarmos que pode haver manipulação. Imaginemos que um político importante seja condenado em primeiro grau numa ação de improbidade. Alguém desconhece a pressão que haverá sobre o tribunal para julgar também nesse sentido e torná-lo inelegível? Pressão eventualmente política, inclusive. Quem conhece a estrutura de alguns tribunais sabe que isso pode ocorrer e vem ocorrendo.
O sr. citaria exemplos disso?
Lembre-se de episódios que foram revelados sobre a antiga composição do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro. O TRE do Rio foi o primeiro a sustentar a necessidade da Lei da Ficha Limpa. À falta de critérios, o tribunal os ia inventando. O que se diz hoje? Que determinados escritórios de advocacia conseguiam limpar a ficha das pessoas no TRE. Isso é objeto hoje de investigação no CNJ. Será que queremos reproduzir esse quadro?
O tribunal pode se deixar contaminar pela opinião pública no julgamento do mensalão?
Tenho a impressão de que não. A minha expectativa é de que isso não vai afetar, embora alguns discursos sugerindo esse tipo de atendimento da opinião pública, como no caso específico da Ficha Limpa, quase levem, no caso do mensalão, a um tipo de juízo condenatório prévio. Tenho impressão de que todos nós estaremos conscientes de nossas responsabilidades.
O mensalão será julgado neste ano? Tenho a impressão de que deveríamos julgar este caso. É um caso que onera o tribunal. Não temos mais justificativa para atrasos. O relator já apresentou o processo, o gabinete do ministro Lewandowski, que é o revisor, é um dos mais organizados do tribunal. Ele dispõe de condições inequívocas de trazer esse processo ainda neste semestre. Todos os ministros estão se debruçando sobre este caso. Portanto, não vejo justificativa para não julgar este caso logo.
Ao se julgar a Lei da Ficha Limpa, falou-se que havia uma pressão popular em favor da lei. Como o senhor vê isso? Não me preocupa a decisão em si sobre a Ficha Limpa, tendo em vista esse alinhamento com a opinião pública. O que me preocupa são fundamentos nesse sentido de que o tribunal deva se curvar à opinião pública. Aí me parece extremamente preocupante, porque isso decreta o falecimento dos argumentos constitucionais. Foi aquilo que, numa brincadeira, disse: o papel do tribunal não é bater palma para maluco dançar. Nós estamos na rota errada quando um juiz diz que tem que atender a anseios populares.
Qual é o risco?
O risco é o tribunal perder a sua função de órgão de controle de constitucionalidade, de tutela dos direitos fundamentais. Essas maiorias que se formam no Congresso, muitas vezes, são ocasionais.
O sr. considera que isso ocorreu na votação da Ficha Limpa?
Olhando a Lei da Ficha Limpa, veremos que ela não teria esse aplauso que teve no passado se fosse votada hoje. Aquele foi um momento muito específico. Era um período pré-eleitoral, a maioria dos membros do Congresso concorreria às eleições e não queria ficar contra a opinião pública. Foi por isso, inclusive, que se produziu essa lei que é, do ponto de vista jurídico, um camelo. É uma lei mal feita. Quem passou por perto dela tem que ter vergonha. Quem trabalhou na sua elaboração tem que ter vergonha. Porque ela é uma lei extremamente mal feita. Não merece o nome de jurista quem trabalhou nessa lei. E o debate no STF serviu para mostrar isso.
Como o sr. analisa o pagamento vultoso de atrasados a juízes?
Esse acúmulo de vantagens gera até uma insegurança jurídica muito grande nos Estados e deve debilitar as finanças estaduais. Não há clareza sobre qual é o numerário necessário para sustentar o Judiciário local. Lembro-me de que a presidente de um tribunal do Nordeste dizia que tinha créditos acumulados de férias em torno de R$ 600 mil. Eu não consegui entender. Isso não existe nos tribunais superiores.
O sr. concorda com esse modelo: um juiz tenha 60 dias de férias, pode vender 30 dias e, passados anos, receber até meio milhão de reais de férias não gozadas?
Em algum momento na história se estabeleceram os dois meses de férias. Mas a lei não estabelece a possibilidade de venda das férias. E o argumento da necessidade de 60 dias de férias briga com a possibilidade de venda.
Os magistrados argumentam que procuradores podem vender férias e licenças-prêmio.
No Ministério Público, a lei prevê os dois meses de férias e a possibilidade de venda, o que gera no Judiciário a busca desse paradigma. A jurisprudência do STF entende que, desde a Lei Orgânica da Magistratura, não há que se falar em licença-prêmio. A despeito disso, alguns tribunais mantêm a licença-prêmio e aceitam a venda. Tudo isso gera esse acúmulo. Na magistratura não se devia raciocinar tentando incorporar os benefícios do MP, mas defender a supressão dos benefícios do MP, benefícios que não são condizentes com a atual cultura institucional.
O sr. defende mudanças?
Vamos ter, em algum momento, que conversar com alguma tranquilidade em relação a isso. Na minha gestão eu já tinha defendido a superação desse modelo de dois meses de férias.
Como o sr. analisa, no debate em torno da criação da Comissão da Verdade, a punição dos responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura militar?
Não vou me pronunciar sobre isso. É uma discussão que tem que se travar no âmbito próprio. A mim me parece que o Supremo deu um equacionamento adequado no debate sobre a Lei de Anistia, ao dizer que esse modelo de anistia fez parte do processo constituinte, não decorre da Lei de Anistia, fez parte da Constituinte. A emenda que convoca o processo constituinte e que dá legitimidade à Constituição de 1988 estabeleceu esse modelo de anistia. Parece que isso responde à questão que está colocada.
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