terça-feira, 13 de março de 2012

Ministério Público prepara ações contra militares por crimes da ditadura


Ministério Público prepara ações contra militares por crimes da ditadura

Tese de procuradores ignora a Lei da Anistia para os chamados casos de ‘desaparecimento político’ por entender que eles não prescreveram; militares contestam

10 de março de 2012 | 23h 22
Roldão Arruda
O Ministério Público Federal está intensificando esforços para a instalação de processos que levem à responsabilização de pessoas envolvidas com os chamados crimes permanentes - sequestro e ocultação de cadáver - praticados por agentes do Estado nos anos da ditadura militar. Em São Paulo, procuradores federais estão prestes a ajuizar as primeiras ações nesses casos, mais conhecidos como "desaparecimentos". Eles defendem a ideia de que os possíveis autores de crimes permanentes não foram abrangidos pela Lei da Anistia, que cobre um período limitado de tempo, entre 1961 e 1979.
Iniciativa de procuradores surge em momento de embate entre Dilma e militares - Wilson Pedrosa/AE
Wilson Pedrosa/AE
Iniciativa de procuradores surge em momento de embate entre Dilma e militares
Ouvidos pelo Estado, militares da ativa e da reserva contestam a iniciativa e enxergam uma tentativa de desestabilizar a democracia (leia texto abaixo).
Na sexta-feira à tarde, no edifício da Procuradoria da República, na Rua Frei Caneca, região central da capital paulista, foram ouvidos novos testemunhos no caso Edgard de Aquino Duarte, um dos nomes que integram a lista de 156 casos de desaparecimento forçado ocorridos na ditadura. Foi a segunda audiência realizada no ano para tratar desse caso.
De acordo com testemunhas que estiveram presas na mesma época, Duarte foi visto pela última vez numa cela da antiga carceragem do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no bairro da Luz, em junho de 1973.
De maneira discreta, sem declarações públicas, os procuradores federais em São Paulo concentram as atenções em quatro casos. O segundo nome da lista, abaixo de Duarte, é o de Aluízio Palhano Ferreira, que desapareceu em 1971, em São Paulo, após ter sido detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna, organização militar que se tornou mais conhecida pela sigla DOI-Codi.
O objetivo é reunir o máximo de provas para ajuizar ações contra os eventuais responsáveis pelos crimes. O trabalho focaliza essencialmente sequestro e ocultamento de cadáver, que são crimes permanentes. Quando se fala, por exemplo, em homicídio, existe a possibilidade de se alegar prescrição da pena.
Embora estejam à frente, os procuradores em São Paulo não são os únicos empenhados na abertura de processos contra agentes envolvidos com desaparecimento forçado de opositores da ditadura. Sob a coordenação do Grupo de Trabalho Justiça de Transição, da 2.ª Câmara Criminal, em Brasília, representantes do Ministério Público Federal trabalham com o mesmo foco em várias regiões do País.
Debate jurídico
Até agora nenhuma ação foi ajuizada, mas, segundo o coordenador do grupo, procurador Ivan Claudio Marx, de Uruguaiana (RS), isso está prestes a ocorrer. Ele também observa que os esforços nessa direção começaram em 2008.
"O raciocínio com o qual trabalhamos, aceito pela maior parte dos países que viveram situações semelhantes, é de que o crime de sequestro e ocultação de cadáver, agravado por maus tratos, é um crime permanente", explica o procurador. "Isso significa que continua sendo perpetrado enquanto a pessoa não é localizada, enquanto não se esclarece o que aconteceu. Como se trata de um crime que ainda não se consumou, ele não pode ser abrangido pela Lei da Anistia de 1979. Ela não se aplica a atos posteriores àquela data."
A discrição e o alto nível de atenção com que os procuradores tratam os casos se devem à polêmica jurídica que envolve o tema e ao receio de que as denúncias não sejam aceitas pelos juízes. Paira sobre o debate a sombra do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2010, definiu que a Lei da Anistia beneficiou também os agentes de Estado.
O procurador que coordena o Grupo Justiça de Transição pode citar de cabeça trechos daquela decisão. Mas também observa que o STF já deu mais de um sinal de que os casos de crimes permanentes devem ser tratados de forma diferenciada. Ele cita como exemplo o fato de o Supremo ter aceito, em 2009, o pedido de extradição do coronel reformado uruguaio Manuel Cordeiro.
Acusado pelo desaparecimento de dez pessoas e o sequestro de um bebê, além de envolvimento com torturas, no ano de 1976, Cordeiro viveu clandestinamente em Santana do Livramento (RS) até 2009 - quando foi localizado por organizações de defesa dos direitos humanos. No debate sobre sua extradição, solicitada pela Argentina, a defesa alegou que os crimes haviam sido prescritos e citou a anistia.
"Mas o STF decidiu pela extradição, por entender que o sequestro é um crime permanente", diz Marx. "O mesmo critério foi utilizado em 2010 no debate sobre a extradição de outro militar, dessa vez argentino."
A estudiosa Glenda Mezarobba, doutorada em política pela USP e especialista em justiça de transição, observa que o conceito de crime permanente é aceito em países vizinhos que também enfrentaram ditaduras. Um dos primeiros a adotá-lo na região foi a Argentina. "Com o passar do tempo, parte do judiciário chileno também tratou de considerar como sequestro permanente vários desaparecimentos ocorridos no período contemplado pela anistia no país, de 1973 a 1978".
Ainda segunda a pesquisadora, no cerne da questão está o argumento de que a anistia não se aplica a casos em que se desconhece a data do fim do crime.
Inquietação
A movimentação do Ministério Público mobiliza atenções tanto no meio dos militares quanto entre familiares de mortos e desaparecidos. Na avaliação do advogado Aton Fon Filho, que atua na área de direitos humanos, trata-se de um debate diferente daquele que existe em torno da Comissão da Verdade.
"O desafio da comissão é sobretudo político, de exposição do que ocorreu na ditadura. No caso do Ministério Público o foco é criminal", observa.
Para o ex-preso político Ivan Seixas, que conviveu com Edgard Duarte na prisão e foi chamado a depor na sexta-feira, em São Paulo, a estratégia dos procuradores tem melhores chances de levar à responsabilização dos agentes de Estado do que tentativas anteriores.

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